segunda-feira, 19 de maio de 2008

Como Pensam os Mestres - 2

Novidade Bombástica

Comentários: MI Luis Henrique Coelho

A versão 2008 do Memorial Mário Covas definitivamente não começou bem para mim. Após perder para Zambrana uma partida onde ele jogou muito mal a abertura e ficou perdido no lance 11, perdi minha partida na 2ª rodada com uma situação oposta: saí da abertura com uma situação muito delicada devido a uma excelente novidade teórica posta em prática por meu adversário que parece refutar um sacrifício de qualidade introduzido por Anand em 1997 e que, até ontem, a teoria de aberturas tem considerado bom para as pretas. Foi minha segunda derrota seguida aplicando um sacrifício de qualidade.


Ainda mais catastrófico para mim, entretanto, foi o fato que, após pensar 40 minutos e decidir responder à sua novidade com o plano defensivo de 20...Rf8-21...Qd8, eu acidentalmente voltei a dama para ‘d8’ primeiro, após o que a posição das pretas já é completamente perdida devido à torre em ‘a8’ fora de jogo e, principalmente, ao peão desprotegido em ‘f7’. Descuidos desta ordem são coisas que podem acontecer quando se concentra por tempo demais em uma posição a ponto de sentir que se viajou para outro planeta, e então se esquece de dar uma última checada no lance que se decide fazer, somente para voltar ao Planeta Terra antes de seguir a partida. Ainda que eu já tenha ouvido vários casos de tal fenômeno surpreendendo jogadores profissionais, isso nunca me havia acontecido antes.

Tenho tido bons resultados em meus embates contra Krikor, havendo ganhado a última no Magistral Hebraica e, antes desta, empatado duas partidas onde estive ganho (Mário Covas 2007 e Villa Martelli 2008), mas desta vez tenho de reconhecer que ele merece todo o mérito por sua excelente preparação e, pode-se dizer, fácil vitória. Tal foi a profundidade de suas análises em sua nova idéia no lance 20 que ele usou menos de meia-hora para a partida inteira. A partida:

Mekhitarian, Krikor (2466) – Coelho, Luis (2392) – 2ª rodada.

Defesa Siciliana – Variante Richter-Rauzer – B65

1. e4 c5 2. Nf3 d6 3. d4 cxd4 4. Nxd4 Nf6 5. Nc3 Nc6 6. Bg5 e6 7. Qd2 Nxd4 8. Qxd4 Be7 9.0-0-0 0-0 10. f4 Qa5 11. Kb1 h6 12. h4 Rd8 13. Bd3 Bd7 14. e5 dxe5 15. fxe5 Bc6 16. Qf4 Nh5 17. Qg4 Rxd3 18. cxd3 hxg5 19. Qxh5 gxh4 20. d4 Qd8 21. Rhf1 g6 22. Qg4 Qf8 23. d5 Bd7 24. d6 Bd8 25. Rf4 Qg7 26. Rdf1 g5 27. Rxf7 Qxf7 28. Rxf7 Kxf7 29. Qf3+ Ke8 30. Qh5+ Kf8 31. Qh8+ Kf7 32. Qh7+ 1-0

Na posição do lance 17 (diagrama abaixo) as negras parecem ter problemas muito sérios: o cavalo em ‘h5’ não tem casa, e capturar o bispo branco em ‘g5’ ocasiona uma abertura potencialmente mortal da coluna ‘h’, a partir do que o bispo de ‘d3’ torna-se uma peça de ataque muito poderosa.

Uma variante conhecida como perdedora para as pretas, por exemplo, é 17...hxg5? 18.Qxh5 Rxd3 19.hxg5! Rxd1+ 20.Nxd1 com mate em alguns lances. Em Shirov-Anand, Monaco 1997, o GM indiano descobriu então um lance que parecia ser tão convincente que a variante 14.e5 ficou automaticamente desencorajada pela teoria e passou a ser vista com pouquíssima freqüência na prática magistral: o sacrifício de qualidade 17...Rxd3!, eliminando do tabuleiro o forte bispo branco e levando, assim, a uma posição onde as negras têm excelente compensação pela qualidade devido ao seu peão de vantagem, segurança de seu rei, falta de alvos de ataque para as brancas e atividade do par de bispos. A mencionada partida terminou empatada em mais alguns lances após 17...Rxd3 18.Rxd3 hxg5 19.Qxh5 gxh4 20.Rd4 g6 21.Rg4 Qc5 22.Rf1 Bf6 23.Rxg6+ fxg6 24.Qxg6+ Bg7 ½-½.

Após Shirov-Anand alguns defensores das brancas, como o GM francês Igor Nataf e seu colega sérvio Milos Pavlovic, passaram então a advogar a causa do lance 18.cxd3, criando a possível idéia de avançar d4-d5. Ninguém pareceu levar esta nova idéia muito a sério, e a última partida séria na variante também havia acabado rapidamente em empate: 17...Rxd3 18.cxd3 hxg5 19.Qxh5 gxh4 20.Rxh4 Bxh4 21.Qxh4 Qd8 22.Qh3 Qg5 23.Rh1 Qh6 24.Qxh6 gxh6 25.Rxh6 Bxg2 26.Rh4 Bc6 27.Ne4 ½-½, Jaracz-Miroshnichenko, Bad Wiessee 2005.

Eu tinha conhecimento de tudo isso antes da partida de ontem, e me julgava bem versado em toda esta linha. O que eu não esperava, contudo, é que Krikor estivesse com uma preparação de aberturas tão profunda a ponto de não apenas conhecer toda a teoria da variante, como também ter preparado sérias melhoras sobre a informação já existente. O que torna o 20.d4! de Krikor tão mais forte que o 20.Rxh4?! de Pawel Jaracz é a flexibilidade: enquanto o GM polonês se precipita em um ataque imediato pela coluna ‘h’ aberta, o mestre brasileiro mantém a possibilidade de Rxh4 enquanto mantém em aberto a idéia de atacar ‘f7’ e, agora, cria também a idéia de avançar d5. São três idéias de ataque diferentes em uma mesma posição, e após alguns minutos de reflexão percebi com desgosto que havia entrado em campo minado e que as pretas agora estão sob séria pressão. Pensei primeiramente no óbvio 20...Bxg2?, mas vi que 21.Rh2 h3 22.Rg1!, com a idéia de 23.Rgxg2, é ganhador para as brancas. Considerei então 20...Rd8?, mas aí vem 21.Rxh4! Bxh4 22.Qxh4 e as brancas ganham porque não tenho mais o recurso salvador de Qd8-Qg5-Qh6 de Miroshnichenko. Vi também que 20...Qd8? tampouco oferece resistência porque após 21.Rhf1 g6 22.Qg4 eu não tenho como evitar o avanço d4-d5, já que 22...Qd7 23.d5! cxd5 24.Qxd7 Bxd7 25.Nxd5 Kf8 26.e6! Bxe6 27.Nc7 ganha peça.

Ficou claro, então, que as únicas reações possíveis eram contra-atacar com 20...b5 ou defender-me com o plano de 20...Rf8-21...Qd8. Eu estava muito tentado a executar a primeira opção, mas quão inteligente seria entrar na variante mais tática possível após cair em uma preparação caseira? Eu vi que após 20...b5 21.d5! b4 22.dxc6 bxc3 as brancas têm diversas opções como 23.Rhf1, 23.Rd7, 23.Qe2, julguei ser praticamente impossível calcular tudo isso sob pressão do relógio, e então voltei minhas atenções para o plano 20...Rd8-21...Qd8. Não vi nenhuma forma de as brancas conseguirem mais que uma pequena vantagem contra essa idéia, apesar de sua posição ainda ser preferível – eu não tinha ambições de refutação, lutava apenas para obter uma posição jogável onde eu teria chances reais de lutar pelo empate.

Priorizando a praticidade, e preocupado por já estar com quase 1 hora a menos no relógio, decidi afinal aplicar o plano de 20...Rf8 seguido por 21...Qd8 e, somente então, com as casas ‘f7’ e ‘d5’ devidamente protegidas, buscar contra-jogo com o avanço ...b5. Eu estava satisfeito por ter encontrado este plano, mas oscilei de “satisfeito” para “horrorizado” em 1 segundo quando me dei conta que minha mão havia jogado 20...Qd8?? primeiro, antes de jogar a torre em ‘f8’! Krikor então começou a pensar em seu próximo lance, enquanto eu, incrédulo, me retirava do recinto e decidia se iria abandonar a partida caso ele encontrasse 21.Rhf1. Após pouco mais de 10 minutos de reflexão ele encontrou este preciso lance e, a partir daí, joguei meus últimos lances na partida apenas por inércia, para me acostumar aos poucos com a idéia de que meus quarenta minutos de esforço na posição do lance 20 foram em vão e que a derrota seria inevitável. O xadrez de competição não perdoa.

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