O retorno da Variante Robin Hood
Por: MI Luis Henrique Coelho
No ano de 2003, logo após ter conquistado minha terceira norma de Mestre Internacional no Magistral de São José do Rio Preto-SP, viajei a Cuba, na condição de MI-elect, para disputar dois torneios fechados valendo norma de GM na ilha de Fidel Castro. Este mês que passei por lá foi um dos melhores de minha vida, onde aprendi sobre a história e a cultura cubana, fiz muitos amigos, fiquei hospedado em um espetacular hotel 5 estrelas às margens do Mar do Caribe, em Santiago de Cuba, e me diverti aos montes. Entre os bons amigos que fiz por lá estão os GMs locais Neuris Delgado, Yunieski Quezada, Holden Hernandez e Omar Almeira, e o MI venezuelano José Sequera.
Contudo, este mesmo excesso de diversão, aliado ao fato que eu já havia conquistado a última norma de MI poucos meses antes desta viagem, e, assim, estava mais em clima de comemoração do que de trabalho duro, me fizeram ter uma desempenho medíocre, muito aquém de minhas possibilidades. Por alguma razão que não sei explicar eu só conseguia encontrar verdadeira motivação para sair do bem-bom e me esforçar ao máximo em meus embates contra os GMs, e, assim, em minhas 6 partidas contra as temíveis criaturas portadoras desta invejável sigla, derrotei Walter Arencibia e Silvino García Martinez, empatei com Jesus Nogueiras, Neuris Delgado e Irisberto Herrera e perdi uma das partidas mais absurdas de minha carreira para o GM finlandês Heikki Kallio, após ter tido +6.00 no Fritz em um momento. Já com os MIs dos torneios, a situação foi oposta, com um resultado final de 2 vitórias, 5 empates e 8 derrotas (uma delas para Zambrana, óbvio!). Isso levou os brincalhões locais a me apelidarem de “Robin Hood”, o misericordioso enxadrista que rouba pontos dos GMs para então distribuí-los entre os “pobres”. Os piadistas mais incansáveis eram Quezada, que então era MI e no café da manhã anterior à nossa partida disse em voz alta, quando eu entrei no restaurante: “Opa, o meu ponto chegou!” (sim, e ele me ganhou!), e Neuris, que até hoje tem a cara-de-pau de interromper minhas aulas no ICC só para me perguntar: “Hola, muerto! Cuando vienes a Cuba de nuevo? Necesitamos puntos de Elo!”.
Falando com seriedade, acredito que, ainda que seja óbvio que há uma motivação extra em jogar partidas contra os GMs, a grande razão por trás de meus resultados inconsistentes em geral são os enormes buracos de conhecimento que tenho em meu jogo. Estou sempre jogando a abertura com receio da preparação de meu adversário, e muitas vezes é um alívio obter posições igualadas no meio-jogo até quando estou jogando com as brancas. Estou trabalhando para resolver o problema e estou otimista que o erradicarei, mas será um processo lento porque passo 10 horas de meu dia-a-dia dando aulas e me preocupando intensamente com o treinamento e progresso de meus quase 30 alunos, o que me deixa apenas uma hora por dia, em média, para meu próprio treinamento. Hoje o xadrez de competição não pode ser mais que um hobby para mim. Assim, tendo voltado a jogar há poucos meses, apenas um número pequeno de variantes em meu repertório foram estudadas devidamente, o mesmo a ser dito a respeito de meus finais. O Milos tem me ajudado muito nesse sentido, com seu conhecimento, experiência e sempre reinante sinceridade, que o levou a me dizer em uma de nossas últimas sessões de treinamento que “eu sou um estudante de doutorado que erra em questões do colegial”. Ai.
De fato, a única fase do jogo onde me sinto realmente confortável é o meio-jogo, tanto em posições de jogo posicional e planejamento estratégico como em situações mais taticamente complexas e baseadas em cálculo bruto de variantes, onde afirmo, e me perdoem se isso soa como uma falta de modéstia, que me sinto em casa até contra GMs de 2600. Uma das grandes curiosidades que tenho, hoje, é ver que classe de jogador eu me tornaria se eu preenchesse todos os buracos de conhecimento em meu jogo e estivesse com todos os fundamentos bem trabalhados. Talvez seja bem essa a verdadeira motivação que me levou a voltar a competir mesmo com uma agenda de trabalho tão imprópria para uma presença constante em torneios.
Ontem, pela terceira rodada do Memorial Mário Covas, a Variante Robin Hood voltou a atacar e derrotei pela segunda vez em minha carreira o GM Rafael Leitão, certamente um dos melhores, mais respeitados e mais completos enxadristas da América Latina. Já recebi tantos e-mails após a partida, a maioria com uma mistura de admiração e incredulidade, que estou achando que o Presidente Lula também vai me escrever a qualquer momento, perguntando “o que, você ganhou do Leitão, companheiro??”.
Novamente, me perdoem se isso parece falta de modéstia, mas um resultado isolado como este não me surpreende. Conheço-me bem e estou cansado de saber que, ainda que eu tenha força prática no meio-jogo para vencer ocasionalmente jogadores como Rafael, sei bem que continuarei a perder partidas para ele e para outros menos competentes que ele enquanto os problemas de fundamento de meu jogo não forem resolvidos. Nem mesmo uma norma de GM em algum evento próximo me iludiria: meu verdadeiro objetivo para os próximos anos não é vir a possuir o título de GM, mas poder sentir que eu sou um GM.
Vamos à partida:
Coelho, L (2392) – Leitão, R (2604) – 3ª rodada [Defesa Keres – E00]
1.d4 Nf6 2.c4 e6 3.g3 Bb4+ 4.Bd2 c5 5.Bxb4 cxb4 6.Bg2 0-0 7.e4 d6 8.Ne2 e5 9.0-0 Bg4 10.f3 Be6 11.Qd3 Qb6 12.Kh1 cxd4 13.Nxd4 Nbd7 14.b3 Nc5 15.Qe3 Rfe8 16.Nd2 Nfd7 17.Rfd1 a5 18.Nf1 a4 19.Rab1 axb3 20.axb3 Ne5 21.Qe2 Ra3 22.Ne3 Nc6 23.Ndf5 Rea8 24.Nd5 Bxd5 25.exd5 Ne5 26.f4 Ned3 27.Qe3 Qd8 28.Rxd3 Nxd3 29.Qxd3 Ra1 30.h4 Rxb1+ 31.Qxb1 Qf6 32.Qe4 Kf8 33.Nd4 g6 34.Kh2 Re8 35.Qd3 Ra8 36.Qd2 Ra1 37.Nb5 {tempo} 1-0
Duas surpresas na abertura: em primeiro lugar o lance 3...Bb4+, que imagino que Rafael nunca havia jogado antes, e então 9...Bg4!?, uma novidade teórica do mais alto interesse que, acredito eu, foi encontrada no tabuleiro. Meu pouco conhecimento na variante era baseado nas partidas Beliavsky-Grosar, Portoroz 1996, Grischuk-Yemelin, Sochi 2004, e Bacrot-Fedorchuk, Baden Baden 2007, onde foram usados os lances 9...Nc6, 9...Na6 e 9...Re8, respectivamente, mas em todos estes exemplos as pretas jogaram a abertura lentamente demais, apenas se preocupando com o desenvolvimento de suas peças e deixando as brancas construírem sua posição ideal de meio-jogo sem empecilhos. A idéia de Rafael, em contraste, exige mais do condutor das brancas, já que cria alguns problemas de curto prazo relacionados à defesa dos peões de ‘d4’ e ‘c4’, debilita a diagonal a7-g1 e torna mais trabalhoso o desenvolvimento do meu cavalo de ‘b1’, que só pôde ser desenvolvido no lance 16.
Além de 9...Bg4, os dois lances seguintes de Rafael foram bastante engenhosos: 10...Be6 convida o branco a cometer o erro estratégico 11.d5?, fechando a coluna ‘d’ e permitindo manobra Na6-Nc5 que, de tão típica, é a própria razão de ser de 4...c5. É estrategicamente importante para as brancas que, caso o cavalo negro alcance a casa ‘c5’, a coluna ‘d’ esteja aberta para que o peão isolado de ‘d6’ seja alvo de pressão. Assim sendo, deve-se evitar avançar d5 bem como trocar peões no centro com dxe5; é mais bem-fundamentado esperar ...exd4 por parte das pretas.
Um lance após, 11...Qb6! traz a bonita armadilha tática de 12.c5? dxc5 13.dxe5 Nc6!, com idéia de 14.exf6?? c4+!, ganhando a dama branca. No lance 14, tenho outro problema: ainda não posso desenvolver meu cavalo com 14.Nd2? porque 14...Ne5 ganha o peão de ‘c4’. Tive de jogar 14.b3 e esperar ainda mais um pouco para mover meu combatente eqüino.
Passada a pressão de curto prazo das pretas na abertura, chegamos a um meio-jogo estrategicamente complexo onde o segundo jogador mantém uma certa vantagem de caráter temporário baseada em seu melhor desenvolvimento e atividade de suas peças, enquanto as brancas gozavam de uma vantagem de caráter permanente baseada em seu centro mais forte e estrutura de peões mais sólida. Essa luta de vantagem temporária contra vantagem permanente é uma das mais fascinantes no jogo de xadrez, levando a posições onde triunfará o jogador que fizer a melhor síntese entre tática e estratégia, que compreender mais sutilmente o dinamismo da posição. De uma forma geral, o tempo está sempre a favor de quem possui a vantagem permanente, de forma que seu antagonista precisa jogar sempre com a maior energia possível para impedir a consolidação da posição do jogador que, a longo prazo, tende a ter vantagem.
Um lance muito importante foi 17.Rfd1!, jogado após uma reflexão relativamente longa e com o plano de reagrupamento de peças de Nf1-Rd2-Rad1-Qe2-Ne3, após o que as brancas podem facilmente ficar estrategicamente ganhas. Rafael obviamente compreendeu o problema e buscou contra-jogo imediato no flanco-dama com 17...a5!-18...a4. Este avanço debilita a casa ‘b5’, mas tal enfraquecimento chega a ser um fator secundário porque a posição seguia exigindo, primordialmente, dinamismo no jogo das pretas, para procurar intensificar sua vantagem de curto prazo a ponto de impedir que as brancas tenham tempo de consolidar sua posição. De minha parte, eu me sentia ligeiramente incomodado por perceber que a posição exigia até uma certa lentidão no jogo das brancas, que não poderiam ter sucesso em nenhuma iniciativa sem primeiramente haver terminado seu plano de reagrupamento de peças, mas mantinha minha fé que minha posição era também sólida o suficiente a curto prazo para permitir que eu tenha tempo de terminar de efetuar minha manobra. Dita fé me inspirou a jogar o importante 19.Rab1!, cedendo permanentemente a coluna ‘a’, o que eu não era obrigado a fazer, pela ambição de ter mais chances de ataque em um futuro próximo ao manter o maior número possível de peças no tabuleiro.
A posição crítica então chegou nos lances 22-23, quando Rafael jogou 22...Nc6. Ambos tínhamos apenas cerca de 15 minutos no relógio e o tabuleiro era pura tensão. As pretas ameaçam ganhar o peão de ‘b3’ ao trocar o cavalo branco que o defende, e o natural 23.Nec2 não dá vantagem alguma após 23...Nxd4 24.Nxd4 Rea8, pois as brancas não têm nenhuma chance de ataque no flanco-rei. Avaliei então que, com minha manobra de cavalo finalizada e com as peças pretas quase que exclusivamente concentradas no flanco-dama, havia chegado o momento de tomar atitudes mais concretas e sacrificar o peão de ‘b3’ para atacar o flanco-rei e, assim, joguei o lance mais importante da partida, 23.Ndf5!, sem dúvida o único que dá vantagem às brancas. Neste instante o peão de ‘b3’ está envenenado: se 23...Rxb3? 24.Rxb3 Nxb3 25.Qb2! Bxf5 26.Nxf5, ganhando peça. Já 23...Nxb3? perderia qualidade após 24.Qb2 f6 25.Nxd6 Rd8 26.Nb5! Rxd1+ 27.Rxd1. Rafael então resolveu corretamente adiar a captura de material e seguir fortalecendo sua posição dobrando as torres na coluna ‘a’ com o preciso 23...Rea8!, e aqui, sentindo que já tinha vantagem, tive outra decisão difícil entre jogar 24.Rxd6 Rxb3 25.Rad1 com idéia de f4-e5 ou jogar 24.Nd5 Bxd5 25.exd5 Ne5 26.f4 Ng6 27.h4!, onde as negras também me pareciam estar sob séria pressão devido à ameaça branca de Qg4-h5. Ambos os lances me pareciam igualmente bons, eu não conseguia me decidir e, como o relógio já acusava menos de 10 minutos e eu já estou farto de pendurar peça por ter menos de 1 minuto no relógio, tomei minha decisão o mais rápido que pude usando um método cientificamente comprovado: joguei mentalmente uma moeda pra cima. Se desse cara, jogaria 24.Rxd6, se desse coroa, jogaria 24.Nd5. Deu coroa.
E qual não foi minha surpresa ao ver Rafael jogando o sacrifício 26...Ned3?, que na verdade foi seu pior lance na partida e, talvez, um de seus piores nos últimos anos. Também com pouco tempo disponível, ele havia passado alguns minutos calculando a perigosíssima continuação 27.Rxd3 Nxd3 28.Qxd3 Ra1, com idéia de 29...Qf2, onde as brancas têm problemas sérios para defender suas duas primeiras filas. Em resposta a seu lance 26, contudo, joguei após 1 minuto o lance 27.Qe3!, cravando o cavalo de ‘c5’ e ameaçando ganhar peça com 28.Rxd3. Rafael confessou após a partida não ter visto este lance, e aqui jogou 27...Qd8 preparado para perder uma peça após o simples 29.Bf1, um lance óbvio que eu simplesmente não vi. Acredito que se eu tivesse parado pra pensar por um minuto eu teria encontrado, mas eu estava muito preocupado com o tempo e respondi 27...Qd8 imediatamente com 28.Rxd3, o que garante às brancas um final tecnicamente ganho de duas peças menores contra torre. Para meu alívio, ao analisar a partida em casa vi que 28.Bf1 na verdade não ganha peça por 28...Nf2+! 29.Qxf2 Ne4 seguido de 30...Nc3, capturando uma das torres brancas e mantendo o mesmo balanço material existente na partida.
No final, jogado por ambos a ritmo relâmpago, foi importante o lance 30.h4!, criando uma potencial rota de fuga para meu rei via ‘h2’ e, se necessário, ‘h3’, e então 32.Qe4!, garantindo a casa ‘d4’ para meu cavalo. O toque final foi a manobra 36.Qd2!-37.Nb5, após o que as negras perdem o peão de ‘b4’ e a partida. No lance trinta e sete Rafael se preparava para jogar 37...Qe7 mas aparentemente viu, faltando cerca de 3 ou 4 segundos, que este lance perderia imediatamente para 38.Qb2, ameaçando mate e a torre. Já não lhe sobrava tempo para criar nenhuma outra idéia, e após hesitar por 2 segundos ele acabou jogando a dama em ‘e7’ na mesma fração de segundo que seu tempo se esgotava. Derrota por tempo em uma posição perdida, a exemplo de minha queda diante dele há um ano no Mário Covas 2007.
Como última nota, há que se ressaltar a educação de Rafael, que sempre faz análises post-mortem com qualquer adversário, qualquer que seja o resultado. Eu procuro fazer o mesmo, mas sabemos que às vezes é difícil, especialmente quando a principal razão de uma derrota é uma pendurada. Há pouco mais de um mês, na Bolívia, eu tinha uma posição de +10.00 no Fritz contra um MF local que não abandonava a partida pela mais pura fé que o Universo lhe enviaria um milagre. Ele então resolve fazer um lance cuja única idéia desesperada é ameaçar mate em 1. Eu não vi. Levei mate, e ainda o fiz escutando meu adversário gritando “Mate!! Que suerte!!”. Perguntem-me se lhe estendi a mão e quanto tempo demorou pra eu me retirar do salão de jogos.