domingo, 29 de março de 2009

A Partida Perfeita

(por Paulo Sérgio de Castro Oliveira)

Este é um dos subtítulos da terceira parte do excelente livro 'The Fireside Book of Chess', de Irving Chernev e Fred Reifeld. O livro de xadrez para se curtir à frente da lareira. Traduzo a seguir parte da introdução ao conjunto de partidas correspondente daquela obra.

'Definir perfeição no tabuleiro de xadrez é mais difícil do que explicar o que não é perfeição. Uma partida na qual nenhum lado tenha feito um erro não lhe aumenta a perfeição; em tais partidas achamos somente uma monotonia estéril em que falta qualquer qualidade memorável.
Assim nós temos um paradoxo: a perfeição no xadrez somente é possível pelos erros do oponente.

Quão especializadamente são estes erros explorados? Quão profundos são os planos para levar vantagem dos erros? Quão impecável é a execução destes planos?

Quando temos a resposta para estas questões, sabemos se uma partida é ou não é perfeita.

Em algumas partidas obtemos uma intimidade com a perfeição, que vem da consistência de aço do plano do vencedor. Em tais partidas, como Capablanca-Mieses, Bogolyubov-Reti, e Reshevsky-Treystman, tem-se o sentimento - tão irreal quanto irresistível - de que o perdedor não fez um erro, de que ele simplesmente tinha que perder, não importa que lances tivesse feito. Nestes encontros o jogo do vencedor é tão poderoso, que procurar o erro conclusivo é como tentar descobrir a primeira causa sem causa!'

Mais adiante, depois de falar de outros tipos de partidas perfeitas, os autores opinam que a obra prima de Parr - Wheatcroft tem direitos bem baseados para ser considerada a melhor partida de ataque de todos os tempos. Decidi comentá-la, juntamente com a de Capablanca citada acima e uma produção própria contra um Mestre Internacional.

Partida numero 1
Capablanca, José Raul - Mieses, Jacques [E91 – Kings Indian: Classical 6.Be2, unusual replies including 6…c5 and 6…Bg4] Berlim, 1913

1.d4 Nf6 2.Nf3 c5 3.d5 d6 4.c4 g6 5.Nc3 Bg7 6.e4 0–0 7.Be2 e6 8.0–0 exd5 9.exd5
Uma captura interessante. Quando comecei a aprender algo sobre xadrez posicional, ensinaram-me a tomar com o outro peão, depois puxar o cavalo de f para d2, levando-o em seguida a c4. Para impedir que ele fosse dasalojado viria um conveniente a4. E no momento certo, f4, Bf3 e um e5 final pré-glorioso. Mas Capablanca é muito mais simples, e colunas abertas servem para colocar torres (PSCO)!

9...Ne8! 10.Re1 Bg4 11.Ng5
Capablanca não se preocupa sobre o possivel enfraquecimento da sua estrutura de peões, por Bc3. Ele está mais interessado em tomar o controle da coluna do rei aberta (IC&FR).

11...Bxc3?
É provavelmente o único erro da partida. Mas Mieses deve tê-lo feito em cima do fato de que as brancas não podem explorar o tema Grande Diagonal (a1–h8 )(PSCO).

12.bxc3 Bxe2 13.Qxe2
Colocando mais lenha no fogo (PSCO)!

13...Ng7
Agora nos damos conta de que trocando o valoroso bispo que estava em g7, Mieses deixou as suas casa pretas vulneráveis ao ataque e ocupação. Capablanca então começa a explorar esta fraqueza, ao mesmo tempo fazendo bom uso da mobilidade superior de suas torres. O fato de que seus peões dobrados são teoricamente fracos não tem importância (IC&FR).

14.Ne4! 14...f6
E não 14...Re8? 15.Bg5! e as brancas ganham a qualidade (IC&FR)!

15.Bf4! 15...Ne8 16.Bh6 Ng7
As jogadas espertas de bispo ganharam um tempo inteiro para as brancas (IC&FR)

17.Rad1!
A magia das torres, nas mãos do mestre Capa. Entra em cena o tema Ação das Torres Adiante da Cadeia de Peões (PSCO).

17...Na6 18.Rd3
A torre tem três possíveis casas vantajosas nesta fileira: e3, f3 ou h3 (IC&FR).

18...f5 19.Ng5
Ameaçando no mínimo ganhar a qualidade, com 20.Bg7, etc (IC&FR). Observem a temporária inexpugnabilidade das peças menores brancas, em função da debilidade negra nas casa pretas (PSCO).

19...Nc7 20.Qe7!


Uma 'proposta' de trocas, cuja aceitação é inevitável pela ameaça de mate em g7 (PSCO).

20...Qxe7 21.Rxe7 Nce8 22.Rh3!
A despeito da ausência das damas, o branco tem um ataque matador (IC&FR).

22...f4 23.Bxg7 Nxg7 24.Rxh7 Nf5 25.Re6 Rfe8 26.Rxg6+
Mieses abandonou aqui, pois se: 26...Ng7 [26...Kf8 27.Rf7#] 27.Rhxg7+ Kf8 [27...Kh8 28.Nf7#] 28.Nh7# 1–0

No prefácio desta partida, os autores de Fireside escrevem: o comentário padrão sobre uma típica partida de capablanca é: "Muito simples". Ou então: "Muito óbvio". E finalmente: "Mas como ele faz isto?".

Partida numero 2
Parr, Frank – Wheatcroft, George Ashcombr [D71 – Fianchetto Grunfeld 3.g3 d5 variantes e 5.cxd5 (sem Nf3)] London, England, 1938

1.d4 Nf6 2.c4 g6 3.g3 Bg7 4.Bg2 d5 5.cxd5 Nxd5 6.Nc3 Nxc3 7.bxc3 c5
À primeira vista as pretas parecem ter uma partida boa, com a sua pressão temática na grande diagonal. Mas o alvo desta pressão, o peão da dama branco, pode ser solidamente protegido. O que realmente importa é que o desenvolvimento do branco será mais rápido e mais harmonioso (IC&FR)

8.e3 0–0 9.Ne2 Nc6 10.0–0 cxd4 11.cxd4 e5 12.d5 Ne7 13.Ba3 Re8 14.Nc3 Qa5 15.Qb3 e4?
O negro está com problemas pela poderosa concentração de forças do seu oponente convergindo no centro. Ele decide embarcar num plano tático, mas acha o branco bem preparado para as complicações que virão (IC&FR). 16.Nxe4! Falso sacrifício de qualidade, pois seria rapidamente mortal para as negras a ausência do seu bispo de g7 na defesa. E depois o peão de d5 também não poderia ser capturado, pelo futuro Td1 branco (PSCO)

16.Nxe4 Nxd5 17.Rac1 Be6 18.Rc5 Qb6 19.Rb5 Qa6 20.Nc5!
Se agora: 20...Qc6 21.Nxe6 fxe6 22.Rxd5! +-; ou 20...Qd6 21.Nxe6 +- (IC&FR).

20...Nxe3!?
Contra-ataque. Se 21.Nxa6 Bxb3 22.fxe3 Bc4 23.Nc7 Bxb5 24.Nxb5 Rxe3

21.Nxe6! Nxf1
Ainda lutando. Se 22.Nc7 Nd2! (IC&FR)

22.Ng5!!
Se: 22.Nc7 Nd2! (IC&FR)

22...Nd2 23.Qxf7+ Kh8
As brancas não estão preocupadas com a sua desvantagem material: elas lutam pelo rei negro (IC&FR)

24.Bd5!!
Uma jogada de ataque perfeita. Ao mesmo tempo em que ameaça um bonito mate, Parr deixa uma casa em g2 para o seu rei proteger-se (PSCO).

24...h6 25.Bb2!
Alguns ataques beiram o atrevimento. Com exceção da dama e do bispo, todas as peças brancas estão no ar. Todas sem proteção, mas todas com uma função no ataque (PSCO)!

25...Rg8 26.Qd7!! Qa4
Se: 26...hxg5 27.Qh3#; 26...Qxb5 27.Nf7+ Kh7 28.Qxb5 (IC&FR)

27.Bb3!
As pretas ameaçavam mate em 2 (IC&FR)!

27...Nxb3
O lance 27...Qa6 permite este bonito final: 28.Qh3! 28...h5 29.Qxh5+!! 29...gxh5 30.Nf7+ Kh7 31.Bc2+ Ne4 32.Bxe4+ Qg6 33.Rxh5+ Bh6 34.Rxh6#

28.Nf7+ Kh7 29.Rh5!! 29...Qa5 30.Rxh6+!
Wheatcroft abandonou, pois se: 30...Bxh6 31.Ng5# 1–0

Partida numero 3
De Oliveira, Paulo Sérgio - Tempone, Marcelo [B19] Uruguai, 1982

1.e4 c6 2.d4 d5 3.Nc3 dxe4 4.Nxe4 Bf5 5.Ng3 Bg6 6.h4 h6 7.Nf3 Nd7 8.h5 Bh7 9.Bc4
A teoria recomenda 9.Bd3, e depois das trocas a monotonia típica da Caro-Kann parece aumentar. 'Acostumado' a jogar esta sonolenta abertura com o mestre Luiz Ney Menna Barreto, um dos seus ferrenhos defensores, resolvi sair da rotina e tentar colori-la. Karpov também usa a Caro-Kann, mas o faz de uma forma dinâmica, inclusive atacando ferozmente.

9...e6 10.Bf4 Qa5+ 11.c3 Ngf6 12.Qe2
Esta pressão sobre o ponto e6 é meio padrão nesta abertura, e contra principiantes costuma ser mortal. A idéia primata é jogar um cavalo em e5, sacrificando-o em seguida em f7. Aí a dama entra triunfal, capturando em e6 com um xeque geralmente mortal. Mas aqui estava jogando contra um MI argentino, é claro que ele sabia tudo isto.

12...Be7 13.Ne5 Nxe5 14.Bxe5 0–0 15.f3 Nd7 16.Bf4 Bg5 17.Bd6!
As trocas também acontecerão assim, mas de uma forma mais vantajosa para as brancas.

17...Rfe8 18.f4 Be7 19.Bxe7 Rxe7 20.0–0–0!?
Persistindo na idéia de 'colorir' a Monoto-Kann.

20...b5 21.Bb3 c5 22.d5!
Isto mostra a posição temporariamente desvantajosa da torre negra em e7.

22...c4 23.Bc2 Bxc2 24.Kxc2 Qxa2
Após esta captura, que foi um sacrifício consciente, as negras só conseguem dar mais um xeque. Aí ficarão necessitando de um tempo para matar o rei branco até o final.

25.Nf5!
De novo aparece o problema da torre de e7. Depois de 25...Te8, 26.Dg4!+-

25...Qb3+ 26.Kb1 Ree8 27.dxe6 Nf6 28.exf7+ Kxf7 29.Qf3!
O cavalo branco vale mais do que uma torre. Não vale a pena trocá-lo agora, e assim as brancas ameaçam mate após 30.Db7!

29...Ne4 30.Nd6+!
30...Nxd6 31.Rxd6
Agora sim as trocas favoreceram as brancas, porque o cavalo negro era muito eficiente na defesa do seu rei. O domínio principalmente sobre as casas brancas que a minha dama tem, não pode ser enfrentado à altura pela dama negra, aprisionada por seus próprios peões. E ainda por cima o rei preto deverá perder alguns tempos para tentar colocar-se em segurança.

31...Kg8 32.Rd7 Kh8 33.Qg4
Por que aqui? Você entenderá melhor no lance 35.

33...Rg8 34.Rhd1 b4 35.Rb7!
Ao mesmo tempo em que defende o mate de forma sutil, esta torre deixa caminho livre para a sua companheira. E ainda ameaça ganhar a dama inimiga! Repare que este lance só é possível porque a dama branca está em g4, defendendo a torre de d1...

35...a5 36.f5 Raf8 37.Rd6 Rf6
Única maneira de parar o mortal f6 branco, mas...

38.Rdd7
Mais rápido seria: 38.Rxf6 gxf6 (38...g6 39.Rh7+ Kxh7 40.Rf7+ Rg7 (40...Kh8 41.Qd4+ Rg7 42.Qxg7#) 41.Qxg6+ Kh8 42.Qxg7#) 39.Qd4 Rg7 40.Qd8+ Kh7 41.Rb8 Qxb2+ 42.Kxb2 Rxg2+ 43.Kc1 Rg1+ 44.Kd2 Rg2+ 45.Ke3 Rg3+ 46.Kf4 Rg4+ 47.Kxg4 b3 48.Qe7#

38...bxc3
Tempone poderia ter abandonado aqui. Mas deve ser duro para um provável discípulo de Grau perder desta forma.
39.Rxb3 cxb3 40.bxc3 Ra6 41.Qa4 Rb8 42.Qd4 Rg8 43.Rf7 a4 44.f6 Rxf6 45.Rxf6 gxf6 46.Qxf6+ Kh7 47.Qf5+ 1-0

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