Por: Paulo Sérgio de C. Oliveira
Tenho testemunhado durante todos esses anos em que aprendo a Arte de Caissa, um conselho comum de enxadristas e treinadores de elite: 'Devemos estudar os Clássicos'!
Dvoretsky e Shereshevsky, por ex., também recomendam. Mas nunca li uma explicação bem clara sobre o porquê de fazê-lo. Para mim bastava sentir o efeito de tal estudo, que sempre foi positivo. É como acender a luz, alguém lhe disse alguma vez no passado; 'ligue o interruptor'! Basta, para quem quer luz...
Agora se você é do tipo investigativo, recentemente li a seguinte explicação (parcial): '...para evitar que alguém invente a roda novamente...'.
A questão do modelo é crucial, pois os antigos deixaram muitos modelos sólidos, que hoje são apenas repetidos por Kasparov ou Kramnik. Inventar algo novo é muito difícil e os bancos de dados estão aí para checar isto. Os ancestrais deixaram estratégias, manobras padronizadas, finais, exemplos, atitudes. A nossa ignorância disso é terrível e desrespeitosa. Costumamos ignorar modelos de enxadristas brasileiros e dos nossos velhos campeões. Mas eles só não chegaram lá, no Campeonato Mundial, porque tinham outras prioridades. E haviam nascido no lugar errado, onde as chuteiras eram o intelecto permitido.
Walter Osvaldo Cruz foi um desses campeões marcantes. Filho do famoso médico sanitarista Osvaldo Cruz, também escolheu a Medicina como carreira, na especialidade de Hematologia. Não sei como conseguiu também ser 6 vezes Campeão Brasileiro de xadrez, e naquele tempo não havia 'marmelada'! Ou melhor, tinha, mas era servida como doce mesmo!
Eram provas duras, com adversários de alto nível e longo tempo de jogo, além de suspensões eventuais. Cruz foi campeão nos anos de 1938, 1940, 1942, 1948, 1949 e 1953. Em provas internacionais, empatou com Alekhine e vários jogadores de altíssimo nível.
Cruz, Walter Osvaldo - Apsheniek, Fritzis
Buenos Aires, Olimpíada Mundial, 1939 [C68: Ruy Lopez, variante das trocas]
Comentários de Roberto Grau
1.e4 e5 2.Cf3 Cc6 3.Bb5 a6 4.Bxc6
Esta variante das trocas é relativamente pouco usada, apesar de ser muito interessante. Leva a uma partida pausada, de posição, na qual as brancas têm que tratar de explorar a sua vantagem de peões na ala do Rei, enquanto o negro tem que aproveitar a existência de seus dois bispos para obter uma compensação. É sugestivo o fato de que o segundo jogador tem que tratar de ganhar, porque não pode jogar para empate, já que a maioria de peões contra um jogo passivo, iria se impor inexoravelmente.
4...dxc6 5.d4
A jogada de Lasker, para entrar imediatamente no final desejado. A jogada proteladora 5.Cc3, ameaçando 6.Cxe5, tem a bonita resposta de Berstein 5...f6!
5...exd4 6.Dxd4 Dxd4 7.Cxd4 Cf6
Superficialmente jogado. O desenvolvimento rotineiro do cavalo o deixa mal colocado, já que a sua melhor casa nesta variante é e7, para depois de c5 transladar-se via c6 a d4. Roberto Grau sugere que a melhor jogada parece ser 7. ..Bd6, mas Oscar Panno corrige: a melhor defesa se baseia em 7...Bd7 (7...c5 8. Ce2 Bd7 é uma sugestão de Pachman) 8.Be3 O-O-O, com chances equilibradas.
8.f3 Bc5 9.Be3 O-O 10.Cf5 Bxe3 11.Cxe3
E agora, destruído o par de bispos do negro, a vantagem do branco é teoricamente decisiva, mas tem que fazê-la efetiva, e isto é o que faz em estilo clássico o mestre brasileiro. A partir deste momento sua tarefa é impecável e a audácia e a beleza da concepção final da partida é notável.
11...Be6 12.Cc3 Tad8 13.O-O Tde8 14.Tad1 Bc8 15.Tfe1 g6 16.Rf2 Rg7 17.g4 h5
Típico do empreendedor mestre Letão. Mas o branco calculou um plano profundo para opor-se à projetada invasão pela coluna “h”.
18.h3 Th8 19.Rg3 Cd7 20.f4 Cc5 21.e5 a5 22.Cc4
Ao mesmo tempo em que trata de valorizar a sua maioria de peões, Cruz aproveita a oportunidade brindada pela última jogada de Apcheniek para melhorar a situação de um cavalo e provocar o adversário. O Tema de Capablanca: 'limpar a folhagem' da posição para aproveitar as vantagens de forma pura, sem rebuscamentos.
22...b6 23.Cd2
Rumo à melhor casa para esta peça, ou para a sua 'irmã'!
23...Th7 24.Cde4 hxg4 25.hxg4 Cxe4+ 26.Cxe4 Teh8 27.Cf2!
A chave da defesa do branco.
27...Be6 28.b3
Quiçá seja mais exato 28.a3.
28...a4 29.Th1 Txh1 30.Cxh1 axb3 31.axb3 Ta8
Já que a entrada é impossível por outra parte, vai pela coluna “a”. Mas o branco, que viu muito longe, tem reservada uma manobra oculta, que não só anula o plano do mestre europeu como também assegura ao brasileiro um notável triunfo.
32.Cf2 Ta2 33.Ce4!
Entregando o peão, que não pode tomar-se por causa de 34.Td8 e o mate é inevitável. PS: o mate se evita com 34...f5, também perdendo, porém com complicações. Mas 34.Cf6! transpõe para o que aconteceu na partida.
33...Bd5 34.Cf6 Txc2
E o negro tomou o peão. Mas agora a invasão é pela coluna a. Talvez o melhor para o segundo jogador fosse voltar a a8, mas depois de 35.c4 Be6 36. Tf1, ou simplesmente 35.Cxd5 cxd 36.Txd5, o branco deveria ganhar igualmente.
35.Ta1 Tc3+ 36.Rh4 Bg2!
Muito engenhoso, para evitar o mate ameaçado voltando com a torre para h8.
37.Ta8 Th3+ 38.Rg5 Th8 39.Ce8+ +-
Se: 39.Txh8 Rxh8 40.e6! (ameaçando e7) fxe 41.Rxg6 também ganha, mas não teria a bonita variante que segue.
39...Rh7 40.Rf6 c5 41.Rxf7! Tf8+
Evidentemente não 41...Bxa8, por causa de 42.Cf6+ seguido de g5++. Por outro lado, se 41...Rh6, então 42.g5+ e Cf6+ dão mate ou ganham a torre.
42.Rxf8 Bxa8 43.Cf6+ Rh8 44.f5 g5
Se 44...gxf 45.g5! seguido de g6 e g7++! Quem precisa de modelos de mestres estrangeiros?!
45.e6 Bc6 46.Cd7 1-0
Um trabalho finíssimo.
domingo, 15 de março de 2009
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