Por Carlos Cavallo
Diz-se que certa vez se lhe perguntou a Capablanca quantas jogadas via ao que o grande mestre cubano contestou, para assombro geral: "uma", para depois acrescentar, "mas sempre a melhor".
A referência a esta anedota tem o valor de antecipar em anos o resultado de investigações sobre o pensamento experiente no âmbito do xadrez. Estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, em sua preocupação por detectar os processos psíquicos subjacentes à atividade de pensamento, levaram a cabo importantes investigações sobre como se adquire e se mantém a capacidade de pensar bem, com o objetivo manifesto de converter as pessoas em pensadores competentes.
Sem importar a área de conhecimentos com que tratam, e independentemente de seu nível evolutivo ou condição social, sustentam que o cultivo destas habilidades do pensamento conduz a uma aprendizagem exitosa, em todas as idades e para todas as matérias. Por isso asseveram que toda teoria sobre um ensino adequado deve ter ao menos alguma noção do que fazem aquelas pessoas que se definem como experientes em seu campo de atuação quando pensam ou resolvem problemas.
Em seu afã por pesquisar o comportamento dos experientes quando se enfrentam a situações e problemas que correspondem a suas áreas de atuação e contrastá-lo com o de indivíduos menos hábeis, o psicólogo holandês Adrián de Groot (1965) estudou o desempenho dos mestres de xadrez, com relação a jogadores menos fortes, mas de bom nível de jogo, quando se encontram na situação de ter que eleger as melhores jogadas.
A idéia motriz desta investigação era que os mestres de xadrez deviam escolher, numa partida, aqueles movimentos que os ajudavam a ganhar, e que a seleção destes movimentos implicava em complexas tomadas de decisão, complexidade no sentido de que o percurso total da variante não era visível, psiquicamente falando.
Partia-se do pressuposto de que os mestres faziam melhores movimentos que os jogadores menos hábeis, o que era óbvio, e que podiam ver mais e mais longe, e analisar com maior precisão as conseqüências de cada potencial jogada.
Explorou suas hipóteses de trabalho apresentando aos jogadores partidas de xadrez e pedindo-lhes que elegessem os melhores movimentos, assim como que pensassem em voz alta enquanto consideravam as diversas possibilidades.
Os resultados do experimento não corroboraram, em sua totalidade, suas hipóteses iniciais. O pensamento dos mestres se manifestava qualitativamente superior, mas não quantitativamente. Não pensavam mais jogadas do que os jogadores menos hábeis, nem embarcavam em longas análises para cada jogada, simplesmente se lhes ocorriam as melhores jogadas.
Como se explicava isso? De Groot pensou que os mestres tinham desenvolvido e possuíam uma base de conhecimentos que lhes facilitava o reconhecimento das posições e lhes permitia perceber rapidamente os pontos fortes e débeis das mesmas e atuar em conseqüência.
Para provar esta idéia de que as percepções dos mestres eram mais ricas e estruturadas, o que lhes facilitava o reconhecimento das peculiaridades das estruturas ou esquemas do jogo, De Groot mostrou a mestres e jogadores de menor força partidas de xadrez durante cinco segundos e depois lhes pediu que reproduzissem a localização das peças com a maior precisão possível. Os resultados nestas tarefas de cor de curto prazo mostraram um alto rendimento nos mestres, enquanto os jogadores menos hábeis encontravam dificuldades.
No entanto, em novos experimentos com peças colocadas em forma dispersa, sem ordem nem lógica, os mestres não puderam repetir o rendimento anterior e não puderam lembrar melhor do que os jogadores de menor nível onde estavam colocadas as peças. A superioridade anteriormente demonstrada não se fundava na capacidade de sua memória de curto prazo, mas sim, como se evidenciava, nos esquemas ou estruturas significativas que constituíam sua base de conhecimento, e que não lhes serviam para reconhecer peças colocadas a esmo.
Isto é, a capacidade de recordar dependia fundamentalmente da natureza e qualidade da informação que previamente tinham adquirido. Quando essa informação estava em correspondência com os requerimentos da tarefa, constituía-se numa ferramenta adequada para determinar os aspectos relevantes da mesma e guiava eficazmente suas estratégias de ação.
Em linhas gerais e sobre a base de outros estudos em diferentes domínios de conhecimento, pôde-se caracterizar o comportamento experiente por:
1) a aptidão para o reconhecimento de esquemas ou estruturas significativas de um modo relativamente automático, o que implica imposição de sentido às configurações.
2) o modo de organizar o próprio conhecimento sobre a base de princípios de alto nível de generalidade ou abstração.
3) a capacidade de controlar e regular o próprio pensamento.
4) poder julgar com precisão e de forma realista o grau de dificuldade ao qual se está enfrentando.
5) poder avaliar seus progressos e predizer os resultados de sua atividade.
6) aceitar o desafio de abordar situações difíceis que implicam no risco de fracasso e que outros não assumiriam.
Veremos como estas habilidades gerais do pensamento experiente se vislumbram na seguinte partida, através dos comentários de um de seus contendores, e como, sobre a base deste pensamento, as estratégias e conceitos fundamentais do xadrez se manifestam no jogo. Isso implica que estas habilidades podem ser ensinadas dentro do seio de uma disciplina, o que assegura que algo valioso pode ser aprendido, ao mesmo tempo em que se propõe um ensino de alto nível para o conteúdo especifico de que se trata, neste caso o xadrez.
Primeira partida do match pelo campeonato do mundo entre M. Tal e M. Botvinnik, Jogada em Moscou no ano 1960. Comentários M Tal.
Tal, Mihail - Botvinnik, Mikhail [C18 – Defesa Francesa]
World Championship 23th Moscow (1), 15.03.1960
No período preparatório não nos ocupamos de qual seria minha jogada inicial na primeira partida. Em Belgrado, no ato de encerramento do V Torneio de Candidatos, o locutor me havia perguntado a respeito do primeiro movimento em caso de sair com brancas. Sem titubear lhe prometi sair de Peão do Rei Naturalmente não queria faltar a minha palavra sem razão valida, além de que 1. P4R não é má jogada.
1.e4 e6
Durante minha preparação, não descartei, de forma alguma, a possibilidade que se me propusesse esta defesa. A última defesa francesa de interesse teórico foi a jogada entre Gligoric e Petrosian no Torneio de Candidatos de 1959, e nela as brancas obtiveram vantagem na abertura. Naturalmente tinha examinado dita partida. Mas, ao que parece, Botvinnik também tinha estudado a partida em questão, de maneira que desde o primeiro momento foi travado uma espécie de original duelo psicológico. Antes de efetuar minha segunda jogada, me demorei um minuto tratando de recordar as muitas ramificações desta abertura, não sabendo por qual delas se inclinaria meu adversário.
2.d4 d5 3.Cc3 Bb4
Na variante escolhida por Botvinnik, as negras se desprendem de seu bispo negro, o que debilita bastante o flanco do rei, mas a título de persistente compensação exercem contínua pressão sobre a comprometida posição do branco na ala oposta. As muitas partidas jogadas seguindo esta variante demonstraram que se as brancas demoram em apoderar-se da iniciativa ficam com graves debilidades que se irão pondo de manifesto. Por isso, atualmente nesta variante as brancas tentam forçar a marcha dos acontecimentos a fim de impedir a estabilização das forças do adversário.
4.e5 c5 5.a3 Bxc3+
Botvinnik escolhe a continuação que já tinha merecido anteriormente sua aprovação. Resulta interessante observar que em seu encontro de 1954 com Smyslov várias vezes preferiu retirar seu bispo a "a5".
6.bxc3 Dc7
Parece mais elástica 6...,Ce7 porque ao CR lhe corresponde desenvolver-se precisamente por este caminho, enquanto a dama negra poderia ocupar ocasionalmente a casa a5, para transladar-se depois a a4.
7.Dg4
Nada novo sob o sol. As brancas ameaçam destroçar o flanco do rei adversário. 7...f5 Agora fica claro ao que se propunham as negras com sua sexta jogada: o peão de "g7" ficou defendido. Em vista que se 8.exf6 a.p., Cxf6 não faria mais do que confirmar a tese que figura em todos os manuais a respeito dos inconvenientes de desenvolver a dama (prematuramente) no começo da partida, as brancas, naturalmente, continuaram com:
8.Dg3 Ce7
Com esta última jogada, as negras sublinham que não lhes assusta a perdida do peão de "g7". [Para evitá-lo, seria possível proceder na prévia liquidação no centro mediante 8...cxd4 9.cxd4 e só então jogar 9...Ce7 porque 10.Dxg7?? seria castigado com (Na partida Resehewsky- Botvinnik (1948), as brancas continuaram 10.Bd2 0-0 11.Bd3 b6 12.Ce2 Ba6 13.Cf4 e obtiveram boa posição de ataque.) 10...Tg8 11.Dxh7 Dc3+]
9.Dxg7
Smyslov em sua 14ª partida do encontro com Botvinnik renunciou às complicações e preferiu 9.Bd2. Estou convicto de que as brancas se querem atingir alguma vantagem na abertura, jamais devem desperdiçar a oportunidade de criar posições de caráter agudo com recíprocos compromissos, já que são as que sempre tem mais fundamentos.
9...Tg8 10.Dxh7 cxd4 11.Rd1!?
Há uns 20 anos atrás, um comentarista de partidas de xadrez teria estremecido horrorizado diante de semelhante jogada. O rei branco parte em viagem voluntária, mal começada a partida. As brancas preferem ocultar seus propósitos e não revelar como pensam manobrar com o cavalo, reservando-se a possibilidade de situá-lo em e2 ou em f3. Pelo momento, a perda do roque não tem importância, em primeiro lugar porque as peças inimigas ainda não estão suficientemente desenvolvidas, como também por ser bastante incomoda a situação do monarca negro em seu precário refúgio.
11...Bd7
Jogada muito avessa mediante a qual se apressam a tirar proveito da potencialidade de sua dama localizada em 2AD, pondo-se assim de manifesto a comprometida situação do rei branco. [Pelo que recordo, a única partida onde se provou 11.Rd1 (já recomendada por Euwe) foi na partida Gligoric-Petrosian. O GM russo escolheu um caminho que lhe pareceu muito reto: 11...Cbc6 12.Cf3 Cxe5, mas depois da forte réplica 13.Bg5 encontrou-se em posição muito difícil, já que 13...Cxf3 falha por causa de 14.Bb5+! A possibilidade de reforçar o jogo das negras não escapou a clara visão analítica de Botvinnik]
12.Dh5+
Dessa maneira, é fácil compreender que com 11..., Bd7 se perseguem dois fins: o estratégico, ao contribuir com o desenvolvimento geral das peças e preparando o roque grande, bem como o tático, pelo qual se dirige uma ameaça contra o ponto c2 do adversário. Para não se ver submetidas a violentíssimo ataque, as brancas tem de despregar a máxima atividade. Existem razões para proceder assim. Com sua jogada 7..., f5, as negras se liberaram do compromisso de defender seu peão em f7, cuja ingrata tutela incumbia em parte ao monarca negro. Mas, por outra parte, debilitaram-se na diagonal e8-h5, ficando o rei desprotegido e as peças negras que se encontram em dita diagonal já não poderão contar com o apoio material de um peão. Também temos de atentarmos para o fato de que a dama branca se acha em condições de regressar a tempo a seu "país natal". [Se as brancas jogassem agora 12.Cf3 seguiria 12...Ba4 13.Bd3 Dxc3 e se encontrariam em situação crítica.; Por outro lado a 12.Ce2 as negras possivelmente continuariam também 12...Ba4 com a desagradável ameaça de 13..., d3]
12...Cg6
Com a jogada do texto, as negras lançam um "bola de sondagem" para saber se as brancas estão dispostas ao empate mediante 13.Dh7, Ce7; 14.Dh5+, etc. [Contra 12...Rd8 pensava continuar com 13.Bg5]
13.Ce2
Bem se compreende que a aceitação do empate teria sido uma derrota do espírito criador. Teria significado reconhecer o desconcerto diante da primeira inovação apresentada pelo adversário. A última jogada das brancas foi ditada pela intenção de aproveitar a cravada. Por enquanto se ameaça 14. Cf4 e a 14..., Rf7 calmamente 15. Bd3 ou prosseguir agressivamente com 15. g4. Agora as negras devem preocupar-se por seu rei. Nesta posição, Botvinnik esteve pensando mais de meia hora, do que se pode inferir que em suas análises de laboratório não tinha chegado a descobrir todas as sutilezas da variante. Botvinnik escolhe a melhor continuação e sacrifica outro peão.
13...d3!
[Não podiam satisfazer às negras as continuações 13...Dxe5 14.cxd4; ou 13...dxc3 14.Cf4 Rf7 15.Bd3 com uma série de desagradáveis ameaças. Por exemplo: 15...Cc6 16.Bxf5 exf5 17.e6+ Bxe6 18.Dh7+ Tg7 19.Dxg7+!; A retilínea continuação 13...Ba4 se presta a seguinte objeção: 14.Cf4 Dxc3 15.Bd3 Dxa1 16.Cxg6 Cc6 17.Cf4+ (mais forte do que a que considerei durante a partida: 17.Ce7+ Rd7 18.Cxg8 Txg8 com possibilidades aproximadamente iguais) ; Por outra parte, nada resolvia 13...Cc6 14.cxd4 Tc8 15.Ta2]
14.Cxd3
A resposta é forçada.
14...Ba4+?!
Ainda que pareça estranho esta jogada natural não é boa. O rei branco encontra em sua casa de origem refúgio mais seguro. [14...Cc6! simplesmente, seguido de 0-0-0 teria proposto às brancas problemas bem mais difíceis. Em tal caso, as negras obtinham muito efetiva compensação pelos dois peões sacrificados]
15.Re1 Dxe5?!
Lógico o afã de recuperar parte do material perdido, mas a jogada do texto implica desperdiçar demasiados tempos. [Mais em consonância com o plano seguido pelas negras teria sido 15...Cc6!? , ainda que isso já não seja tão forte, porque as brancas podem continuar com 16.f4 0-0-0 17.Bd2+/- , liberando depois as peças do flanco rei. Cedo ou tarde, as negras se veriam obrigadas a sacrificar seu cavalo em e5. Resulta difícil prever mais longínquos acontecimentos, mas as negras, em todo caso, teriam se apoderado da iniciativa]
16.Bg5!
Agora o principal problema das brancas é reter o rei negro no centro, já que poderiam ser criadas sérias ameaças na coluna do rei aberta.
16...Cc6 17.d4 Dc7 18.h4!+/-
Para por rapidamente em jogo a TR, em vista dos acontecimentos que estão a ponto de desenvolver-se no centro.
18...e5 19.Th3!+/- Df7 20.dxe5 Ccxe5 21.Te3 Rd7 22.Tb1 b6
Não é fácil intuir como, estando a dama em h5, possa significar algo o debilitamento da casa a6. E, no entanto, é assim!
23.Cf4
As peças brancas se desenroscam como um oculto fole.
23...Tae8 24.Tb4! Bc6 25.Dd1!
Chegou-se a uma situação bastante pitoresca. O rei e a dama das brancas, depois de tantas viagens, voltam a estar em suas casas de origem. O BR ainda não jogou. No entanto, a situação das negras é penosa. As brancas não só dispõem da vantagem de um peão saudável, senão que todas suas peças ocupam lugares ativos. A dama, especialmente, controla o centro de um modo muito eficaz.
25...Cxf4 26.Txf4 Cg6 27.Td4 Txe3+ 28.Fxe3
Não convém afastar o bispo de uma posição ativa. Em caso de necessidade, o peão em e3 poderá escudar ao rei.
28...Rc7 29.c4 dxc4
Conduz necessariamente a ganho de material. [A 29...Ce7 30.cxd5 Bxd5 31.Bxe7 Dxe7 32.Dc1+ Sem conceder nenhuma possibilidade]
30.Bxc4 Dg7 31.Bxg8 Dxg8 32.H5
O peão passado começa a atuar. Por este motivo, as negras abandonaram. 1-0