terça-feira, 20 de maio de 2008

Como Pensam os Mestres - 3

O retorno da Variante Robin Hood

Por: MI Luis Henrique Coelho

No ano de 2003, logo após ter conquistado minha terceira norma de Mestre Internacional no Magistral de São José do Rio Preto-SP, viajei a Cuba, na condição de MI-elect, para disputar dois torneios fechados valendo norma de GM na ilha de Fidel Castro. Este mês que passei por lá foi um dos melhores de minha vida, onde aprendi sobre a história e a cultura cubana, fiz muitos amigos, fiquei hospedado em um espetacular hotel 5 estrelas às margens do Mar do Caribe, em Santiago de Cuba, e me diverti aos montes. Entre os bons amigos que fiz por lá estão os GMs locais Neuris Delgado, Yunieski Quezada, Holden Hernandez e Omar Almeira, e o MI venezuelano José Sequera.

Contudo, este mesmo excesso de diversão, aliado ao fato que eu já havia conquistado a última norma de MI poucos meses antes desta viagem, e, assim, estava mais em clima de comemoração do que de trabalho duro, me fizeram ter uma desempenho medíocre, muito aquém de minhas possibilidades. Por alguma razão que não sei explicar eu só conseguia encontrar verdadeira motivação para sair do bem-bom e me esforçar ao máximo em meus embates contra os GMs, e, assim, em minhas 6 partidas contra as temíveis criaturas portadoras desta invejável sigla, derrotei Walter Arencibia e Silvino García Martinez, empatei com Jesus Nogueiras, Neuris Delgado e Irisberto Herrera e perdi uma das partidas mais absurdas de minha carreira para o GM finlandês Heikki Kallio, após ter tido +6.00 no Fritz em um momento. Já com os MIs dos torneios, a situação foi oposta, com um resultado final de 2 vitórias, 5 empates e 8 derrotas (uma delas para Zambrana, óbvio!). Isso levou os brincalhões locais a me apelidarem de “Robin Hood”, o misericordioso enxadrista que rouba pontos dos GMs para então distribuí-los entre os “pobres”. Os piadistas mais incansáveis eram Quezada, que então era MI e no café da manhã anterior à nossa partida disse em voz alta, quando eu entrei no restaurante: “Opa, o meu ponto chegou!” (sim, e ele me ganhou!), e Neuris, que até hoje tem a cara-de-pau de interromper minhas aulas no ICC só para me perguntar: “Hola, muerto! Cuando vienes a Cuba de nuevo? Necesitamos puntos de Elo!”.

Falando com seriedade, acredito que, ainda que seja óbvio que há uma motivação extra em jogar partidas contra os GMs, a grande razão por trás de meus resultados inconsistentes em geral são os enormes buracos de conhecimento que tenho em meu jogo. Estou sempre jogando a abertura com receio da preparação de meu adversário, e muitas vezes é um alívio obter posições igualadas no meio-jogo até quando estou jogando com as brancas. Estou trabalhando para resolver o problema e estou otimista que o erradicarei, mas será um processo lento porque passo 10 horas de meu dia-a-dia dando aulas e me preocupando intensamente com o treinamento e progresso de meus quase 30 alunos, o que me deixa apenas uma hora por dia, em média, para meu próprio treinamento. Hoje o xadrez de competição não pode ser mais que um hobby para mim. Assim, tendo voltado a jogar há poucos meses, apenas um número pequeno de variantes em meu repertório foram estudadas devidamente, o mesmo a ser dito a respeito de meus finais. O Milos tem me ajudado muito nesse sentido, com seu conhecimento, experiência e sempre reinante sinceridade, que o levou a me dizer em uma de nossas últimas sessões de treinamento que “eu sou um estudante de doutorado que erra em questões do colegial”. Ai.

De fato, a única fase do jogo onde me sinto realmente confortável é o meio-jogo, tanto em posições de jogo posicional e planejamento estratégico como em situações mais taticamente complexas e baseadas em cálculo bruto de variantes, onde afirmo, e me perdoem se isso soa como uma falta de modéstia, que me sinto em casa até contra GMs de 2600. Uma das grandes curiosidades que tenho, hoje, é ver que classe de jogador eu me tornaria se eu preenchesse todos os buracos de conhecimento em meu jogo e estivesse com todos os fundamentos bem trabalhados. Talvez seja bem essa a verdadeira motivação que me levou a voltar a competir mesmo com uma agenda de trabalho tão imprópria para uma presença constante em torneios.

Ontem, pela terceira rodada do Memorial Mário Covas, a Variante Robin Hood voltou a atacar e derrotei pela segunda vez em minha carreira o GM Rafael Leitão, certamente um dos melhores, mais respeitados e mais completos enxadristas da América Latina. Já recebi tantos e-mails após a partida, a maioria com uma mistura de admiração e incredulidade, que estou achando que o Presidente Lula também vai me escrever a qualquer momento, perguntando “o que, você ganhou do Leitão, companheiro??”.

Novamente, me perdoem se isso parece falta de modéstia, mas um resultado isolado como este não me surpreende. Conheço-me bem e estou cansado de saber que, ainda que eu tenha força prática no meio-jogo para vencer ocasionalmente jogadores como Rafael, sei bem que continuarei a perder partidas para ele e para outros menos competentes que ele enquanto os problemas de fundamento de meu jogo não forem resolvidos. Nem mesmo uma norma de GM em algum evento próximo me iludiria: meu verdadeiro objetivo para os próximos anos não é vir a possuir o título de GM, mas poder sentir que eu sou um GM.

Vamos à partida:

Coelho, L (2392) – Leitão, R (2604) – 3ª rodada [Defesa Keres – E00]

1.d4 Nf6 2.c4 e6 3.g3 Bb4+ 4.Bd2 c5 5.Bxb4 cxb4 6.Bg2 0-0 7.e4 d6 8.Ne2 e5 9.0-0 Bg4 10.f3 Be6 11.Qd3 Qb6 12.Kh1 cxd4 13.Nxd4 Nbd7 14.b3 Nc5 15.Qe3 Rfe8 16.Nd2 Nfd7 17.Rfd1 a5 18.Nf1 a4 19.Rab1 axb3 20.axb3 Ne5 21.Qe2 Ra3 22.Ne3 Nc6 23.Ndf5 Rea8 24.Nd5 Bxd5 25.exd5 Ne5 26.f4 Ned3 27.Qe3 Qd8 28.Rxd3 Nxd3 29.Qxd3 Ra1 30.h4 Rxb1+ 31.Qxb1 Qf6 32.Qe4 Kf8 33.Nd4 g6 34.Kh2 Re8 35.Qd3 Ra8 36.Qd2 Ra1 37.Nb5 {tempo} 1-0

Duas surpresas na abertura: em primeiro lugar o lance 3...Bb4+, que imagino que Rafael nunca havia jogado antes, e então 9...Bg4!?, uma novidade teórica do mais alto interesse que, acredito eu, foi encontrada no tabuleiro. Meu pouco conhecimento na variante era baseado nas partidas Beliavsky-Grosar, Portoroz 1996, Grischuk-Yemelin, Sochi 2004, e Bacrot-Fedorchuk, Baden Baden 2007, onde foram usados os lances 9...Nc6, 9...Na6 e 9...Re8, respectivamente, mas em todos estes exemplos as pretas jogaram a abertura lentamente demais, apenas se preocupando com o desenvolvimento de suas peças e deixando as brancas construírem sua posição ideal de meio-jogo sem empecilhos. A idéia de Rafael, em contraste, exige mais do condutor das brancas, já que cria alguns problemas de curto prazo relacionados à defesa dos peões de ‘d4’ e ‘c4’, debilita a diagonal a7-g1 e torna mais trabalhoso o desenvolvimento do meu cavalo de ‘b1’, que só pôde ser desenvolvido no lance 16.

Além de 9...Bg4, os dois lances seguintes de Rafael foram bastante engenhosos: 10...Be6 convida o branco a cometer o erro estratégico 11.d5?, fechando a coluna ‘d’ e permitindo manobra Na6-Nc5 que, de tão típica, é a própria razão de ser de 4...c5. É estrategicamente importante para as brancas que, caso o cavalo negro alcance a casa ‘c5’, a coluna ‘d’ esteja aberta para que o peão isolado de ‘d6’ seja alvo de pressão. Assim sendo, deve-se evitar avançar d5 bem como trocar peões no centro com dxe5; é mais bem-fundamentado esperar ...exd4 por parte das pretas.

Um lance após, 11...Qb6! traz a bonita armadilha tática de 12.c5? dxc5 13.dxe5 Nc6!, com idéia de 14.exf6?? c4+!, ganhando a dama branca. No lance 14, tenho outro problema: ainda não posso desenvolver meu cavalo com 14.Nd2? porque 14...Ne5 ganha o peão de ‘c4’. Tive de jogar 14.b3 e esperar ainda mais um pouco para mover meu combatente eqüino.

Passada a pressão de curto prazo das pretas na abertura, chegamos a um meio-jogo estrategicamente complexo onde o segundo jogador mantém uma certa vantagem de caráter temporário baseada em seu melhor desenvolvimento e atividade de suas peças, enquanto as brancas gozavam de uma vantagem de caráter permanente baseada em seu centro mais forte e estrutura de peões mais sólida. Essa luta de vantagem temporária contra vantagem permanente é uma das mais fascinantes no jogo de xadrez, levando a posições onde triunfará o jogador que fizer a melhor síntese entre tática e estratégia, que compreender mais sutilmente o dinamismo da posição. De uma forma geral, o tempo está sempre a favor de quem possui a vantagem permanente, de forma que seu antagonista precisa jogar sempre com a maior energia possível para impedir a consolidação da posição do jogador que, a longo prazo, tende a ter vantagem.

Um lance muito importante foi 17.Rfd1!, jogado após uma reflexão relativamente longa e com o plano de reagrupamento de peças de Nf1-Rd2-Rad1-Qe2-Ne3, após o que as brancas podem facilmente ficar estrategicamente ganhas. Rafael obviamente compreendeu o problema e buscou contra-jogo imediato no flanco-dama com 17...a5!-18...a4. Este avanço debilita a casa ‘b5’, mas tal enfraquecimento chega a ser um fator secundário porque a posição seguia exigindo, primordialmente, dinamismo no jogo das pretas, para procurar intensificar sua vantagem de curto prazo a ponto de impedir que as brancas tenham tempo de consolidar sua posição. De minha parte, eu me sentia ligeiramente incomodado por perceber que a posição exigia até uma certa lentidão no jogo das brancas, que não poderiam ter sucesso em nenhuma iniciativa sem primeiramente haver terminado seu plano de reagrupamento de peças, mas mantinha minha fé que minha posição era também sólida o suficiente a curto prazo para permitir que eu tenha tempo de terminar de efetuar minha manobra. Dita fé me inspirou a jogar o importante 19.Rab1!, cedendo permanentemente a coluna ‘a’, o que eu não era obrigado a fazer, pela ambição de ter mais chances de ataque em um futuro próximo ao manter o maior número possível de peças no tabuleiro.

A posição crítica então chegou nos lances 22-23, quando Rafael jogou 22...Nc6. Ambos tínhamos apenas cerca de 15 minutos no relógio e o tabuleiro era pura tensão. As pretas ameaçam ganhar o peão de ‘b3’ ao trocar o cavalo branco que o defende, e o natural 23.Nec2 não dá vantagem alguma após 23...Nxd4 24.Nxd4 Rea8, pois as brancas não têm nenhuma chance de ataque no flanco-rei. Avaliei então que, com minha manobra de cavalo finalizada e com as peças pretas quase que exclusivamente concentradas no flanco-dama, havia chegado o momento de tomar atitudes mais concretas e sacrificar o peão de ‘b3’ para atacar o flanco-rei e, assim, joguei o lance mais importante da partida, 23.Ndf5!, sem dúvida o único que dá vantagem às brancas. Neste instante o peão de ‘b3’ está envenenado: se 23...Rxb3? 24.Rxb3 Nxb3 25.Qb2! Bxf5 26.Nxf5, ganhando peça. Já 23...Nxb3? perderia qualidade após 24.Qb2 f6 25.Nxd6 Rd8 26.Nb5! Rxd1+ 27.Rxd1. Rafael então resolveu corretamente adiar a captura de material e seguir fortalecendo sua posição dobrando as torres na coluna ‘a’ com o preciso 23...Rea8!, e aqui, sentindo que já tinha vantagem, tive outra decisão difícil entre jogar 24.Rxd6 Rxb3 25.Rad1 com idéia de f4-e5 ou jogar 24.Nd5 Bxd5 25.exd5 Ne5 26.f4 Ng6 27.h4!, onde as negras também me pareciam estar sob séria pressão devido à ameaça branca de Qg4-h5. Ambos os lances me pareciam igualmente bons, eu não conseguia me decidir e, como o relógio já acusava menos de 10 minutos e eu já estou farto de pendurar peça por ter menos de 1 minuto no relógio, tomei minha decisão o mais rápido que pude usando um método cientificamente comprovado: joguei mentalmente uma moeda pra cima. Se desse cara, jogaria 24.Rxd6, se desse coroa, jogaria 24.Nd5. Deu coroa.

E qual não foi minha surpresa ao ver Rafael jogando o sacrifício 26...Ned3?, que na verdade foi seu pior lance na partida e, talvez, um de seus piores nos últimos anos. Também com pouco tempo disponível, ele havia passado alguns minutos calculando a perigosíssima continuação 27.Rxd3 Nxd3 28.Qxd3 Ra1, com idéia de 29...Qf2, onde as brancas têm problemas sérios para defender suas duas primeiras filas. Em resposta a seu lance 26, contudo, joguei após 1 minuto o lance 27.Qe3!, cravando o cavalo de ‘c5’ e ameaçando ganhar peça com 28.Rxd3. Rafael confessou após a partida não ter visto este lance, e aqui jogou 27...Qd8 preparado para perder uma peça após o simples 29.Bf1, um lance óbvio que eu simplesmente não vi. Acredito que se eu tivesse parado pra pensar por um minuto eu teria encontrado, mas eu estava muito preocupado com o tempo e respondi 27...Qd8 imediatamente com 28.Rxd3, o que garante às brancas um final tecnicamente ganho de duas peças menores contra torre. Para meu alívio, ao analisar a partida em casa vi que 28.Bf1 na verdade não ganha peça por 28...Nf2+! 29.Qxf2 Ne4 seguido de 30...Nc3, capturando uma das torres brancas e mantendo o mesmo balanço material existente na partida.

No final, jogado por ambos a ritmo relâmpago, foi importante o lance 30.h4!, criando uma potencial rota de fuga para meu rei via ‘h2’ e, se necessário, ‘h3’, e então 32.Qe4!, garantindo a casa ‘d4’ para meu cavalo. O toque final foi a manobra 36.Qd2!-37.Nb5, após o que as negras perdem o peão de ‘b4’ e a partida. No lance trinta e sete Rafael se preparava para jogar 37...Qe7 mas aparentemente viu, faltando cerca de 3 ou 4 segundos, que este lance perderia imediatamente para 38.Qb2, ameaçando mate e a torre. Já não lhe sobrava tempo para criar nenhuma outra idéia, e após hesitar por 2 segundos ele acabou jogando a dama em ‘e7’ na mesma fração de segundo que seu tempo se esgotava. Derrota por tempo em uma posição perdida, a exemplo de minha queda diante dele há um ano no Mário Covas 2007.

Como última nota, há que se ressaltar a educação de Rafael, que sempre faz análises post-mortem com qualquer adversário, qualquer que seja o resultado. Eu procuro fazer o mesmo, mas sabemos que às vezes é difícil, especialmente quando a principal razão de uma derrota é uma pendurada. Há pouco mais de um mês, na Bolívia, eu tinha uma posição de +10.00 no Fritz contra um MF local que não abandonava a partida pela mais pura fé que o Universo lhe enviaria um milagre. Ele então resolve fazer um lance cuja única idéia desesperada é ameaçar mate em 1. Eu não vi. Levei mate, e ainda o fiz escutando meu adversário gritando “Mate!! Que suerte!!”. Perguntem-me se lhe estendi a mão e quanto tempo demorou pra eu me retirar do salão de jogos.

O DESEMPENHO COMPETENTE

Por Carlos Cavallo

Diz-se que certa vez se lhe perguntou a Capablanca quantas jogadas via ao que o grande mestre cubano contestou, para assombro geral: "uma", para depois acrescentar, "mas sempre a melhor".

A referência a esta anedota tem o valor de antecipar em anos o resultado de investigações sobre o pensamento experiente no âmbito do xadrez. Estudos sobre o desenvolvimento cognitivo, em sua preocupação por detectar os processos psíquicos subjacentes à atividade de pensamento, levaram a cabo importantes investigações sobre como se adquire e se mantém a capacidade de pensar bem, com o objetivo manifesto de converter as pessoas em pensadores competentes.

Sem importar a área de conhecimentos com que tratam, e independentemente de seu nível evolutivo ou condição social, sustentam que o cultivo destas habilidades do pensamento conduz a uma aprendizagem exitosa, em todas as idades e para todas as matérias. Por isso asseveram que toda teoria sobre um ensino adequado deve ter ao menos alguma noção do que fazem aquelas pessoas que se definem como experientes em seu campo de atuação quando pensam ou resolvem problemas.

Em seu afã por pesquisar o comportamento dos experientes quando se enfrentam a situações e problemas que correspondem a suas áreas de atuação e contrastá-lo com o de indivíduos menos hábeis, o psicólogo holandês Adrián de Groot (1965) estudou o desempenho dos mestres de xadrez, com relação a jogadores menos fortes, mas de bom nível de jogo, quando se encontram na situação de ter que eleger as melhores jogadas.

A idéia motriz desta investigação era que os mestres de xadrez deviam escolher, numa partida, aqueles movimentos que os ajudavam a ganhar, e que a seleção destes movimentos implicava em complexas tomadas de decisão, complexidade no sentido de que o percurso total da variante não era visível, psiquicamente falando.

Partia-se do pressuposto de que os mestres faziam melhores movimentos que os jogadores menos hábeis, o que era óbvio, e que podiam ver mais e mais longe, e analisar com maior precisão as conseqüências de cada potencial jogada.

Explorou suas hipóteses de trabalho apresentando aos jogadores partidas de xadrez e pedindo-lhes que elegessem os melhores movimentos, assim como que pensassem em voz alta enquanto consideravam as diversas possibilidades.

Os resultados do experimento não corroboraram, em sua totalidade, suas hipóteses iniciais. O pensamento dos mestres se manifestava qualitativamente superior, mas não quantitativamente. Não pensavam mais jogadas do que os jogadores menos hábeis, nem embarcavam em longas análises para cada jogada, simplesmente se lhes ocorriam as melhores jogadas.

Como se explicava isso? De Groot pensou que os mestres tinham desenvolvido e possuíam uma base de conhecimentos que lhes facilitava o reconhecimento das posições e lhes permitia perceber rapidamente os pontos fortes e débeis das mesmas e atuar em conseqüência.

Para provar esta idéia de que as percepções dos mestres eram mais ricas e estruturadas, o que lhes facilitava o reconhecimento das peculiaridades das estruturas ou esquemas do jogo, De Groot mostrou a mestres e jogadores de menor força partidas de xadrez durante cinco segundos e depois lhes pediu que reproduzissem a localização das peças com a maior precisão possível. Os resultados nestas tarefas de cor de curto prazo mostraram um alto rendimento nos mestres, enquanto os jogadores menos hábeis encontravam dificuldades.

No entanto, em novos experimentos com peças colocadas em forma dispersa, sem ordem nem lógica, os mestres não puderam repetir o rendimento anterior e não puderam lembrar melhor do que os jogadores de menor nível onde estavam colocadas as peças. A superioridade anteriormente demonstrada não se fundava na capacidade de sua memória de curto prazo, mas sim, como se evidenciava, nos esquemas ou estruturas significativas que constituíam sua base de conhecimento, e que não lhes serviam para reconhecer peças colocadas a esmo.

Isto é, a capacidade de recordar dependia fundamentalmente da natureza e qualidade da informação que previamente tinham adquirido. Quando essa informação estava em correspondência com os requerimentos da tarefa, constituía-se numa ferramenta adequada para determinar os aspectos relevantes da mesma e guiava eficazmente suas estratégias de ação.

Em linhas gerais e sobre a base de outros estudos em diferentes domínios de conhecimento, pôde-se caracterizar o comportamento experiente por:

1) a aptidão para o reconhecimento de esquemas ou estruturas significativas de um modo relativamente automático, o que implica imposição de sentido às configurações.

2) o modo de organizar o próprio conhecimento sobre a base de princípios de alto nível de generalidade ou abstração.

3) a capacidade de controlar e regular o próprio pensamento.

4) poder julgar com precisão e de forma realista o grau de dificuldade ao qual se está enfrentando.

5) poder avaliar seus progressos e predizer os resultados de sua atividade.

6) aceitar o desafio de abordar situações difíceis que implicam no risco de fracasso e que outros não assumiriam.

Veremos como estas habilidades gerais do pensamento experiente se vislumbram na seguinte partida, através dos comentários de um de seus contendores, e como, sobre a base deste pensamento, as estratégias e conceitos fundamentais do xadrez se manifestam no jogo. Isso implica que estas habilidades podem ser ensinadas dentro do seio de uma disciplina, o que assegura que algo valioso pode ser aprendido, ao mesmo tempo em que se propõe um ensino de alto nível para o conteúdo especifico de que se trata, neste caso o xadrez.

Primeira partida do match pelo campeonato do mundo entre M. Tal e M. Botvinnik, Jogada em Moscou no ano 1960. Comentários M Tal.

Tal, Mihail - Botvinnik, Mikhail [C18 – Defesa Francesa]

World Championship 23th Moscow (1), 15.03.1960

No período preparatório não nos ocupamos de qual seria minha jogada inicial na primeira partida. Em Belgrado, no ato de encerramento do V Torneio de Candidatos, o locutor me havia perguntado a respeito do primeiro movimento em caso de sair com brancas. Sem titubear lhe prometi sair de Peão do Rei Naturalmente não queria faltar a minha palavra sem razão valida, além de que 1. P4R não é má jogada.

1.e4 e6

Durante minha preparação, não descartei, de forma alguma, a possibilidade que se me propusesse esta defesa. A última defesa francesa de interesse teórico foi a jogada entre Gligoric e Petrosian no Torneio de Candidatos de 1959, e nela as brancas obtiveram vantagem na abertura. Naturalmente tinha examinado dita partida. Mas, ao que parece, Botvinnik também tinha estudado a partida em questão, de maneira que desde o primeiro momento foi travado uma espécie de original duelo psicológico. Antes de efetuar minha segunda jogada, me demorei um minuto tratando de recordar as muitas ramificações desta abertura, não sabendo por qual delas se inclinaria meu adversário.

2.d4 d5 3.Cc3 Bb4

Na variante escolhida por Botvinnik, as negras se desprendem de seu bispo negro, o que debilita bastante o flanco do rei, mas a título de persistente compensação exercem contínua pressão sobre a comprometida posição do branco na ala oposta. As muitas partidas jogadas seguindo esta variante demonstraram que se as brancas demoram em apoderar-se da iniciativa ficam com graves debilidades que se irão pondo de manifesto. Por isso, atualmente nesta variante as brancas tentam forçar a marcha dos acontecimentos a fim de impedir a estabilização das forças do adversário.

4.e5 c5 5.a3 Bxc3+

Botvinnik escolhe a continuação que já tinha merecido anteriormente sua aprovação. Resulta interessante observar que em seu encontro de 1954 com Smyslov várias vezes preferiu retirar seu bispo a "a5".

6.bxc3 Dc7

Parece mais elástica 6...,Ce7 porque ao CR lhe corresponde desenvolver-se precisamente por este caminho, enquanto a dama negra poderia ocupar ocasionalmente a casa a5, para transladar-se depois a a4.

7.Dg4

Nada novo sob o sol. As brancas ameaçam destroçar o flanco do rei adversário. 7...f5 Agora fica claro ao que se propunham as negras com sua sexta jogada: o peão de "g7" ficou defendido. Em vista que se 8.exf6 a.p., Cxf6 não faria mais do que confirmar a tese que figura em todos os manuais a respeito dos inconvenientes de desenvolver a dama (prematuramente) no começo da partida, as brancas, naturalmente, continuaram com:

8.Dg3 Ce7

Com esta última jogada, as negras sublinham que não lhes assusta a perdida do peão de "g7". [Para evitá-lo, seria possível proceder na prévia liquidação no centro mediante 8...cxd4 9.cxd4 e só então jogar 9...Ce7 porque 10.Dxg7?? seria castigado com (Na partida Resehewsky- Botvinnik (1948), as brancas continuaram 10.Bd2 0-0 11.Bd3 b6 12.Ce2 Ba6 13.Cf4 e obtiveram boa posição de ataque.) 10...Tg8 11.Dxh7 Dc3+]

9.Dxg7

Smyslov em sua 14ª partida do encontro com Botvinnik renunciou às complicações e preferiu 9.Bd2. Estou convicto de que as brancas se querem atingir alguma vantagem na abertura, jamais devem desperdiçar a oportunidade de criar posições de caráter agudo com recíprocos compromissos, já que são as que sempre tem mais fundamentos.

9...Tg8 10.Dxh7 cxd4 11.Rd1!?

Há uns 20 anos atrás, um comentarista de partidas de xadrez teria estremecido horrorizado diante de semelhante jogada. O rei branco parte em viagem voluntária, mal começada a partida. As brancas preferem ocultar seus propósitos e não revelar como pensam manobrar com o cavalo, reservando-se a possibilidade de situá-lo em e2 ou em f3. Pelo momento, a perda do roque não tem importância, em primeiro lugar porque as peças inimigas ainda não estão suficientemente desenvolvidas, como também por ser bastante incomoda a situação do monarca negro em seu precário refúgio.

11...Bd7

Jogada muito avessa mediante a qual se apressam a tirar proveito da potencialidade de sua dama localizada em 2AD, pondo-se assim de manifesto a comprometida situação do rei branco. [Pelo que recordo, a única partida onde se provou 11.Rd1 (já recomendada por Euwe) foi na partida Gligoric-Petrosian. O GM russo escolheu um caminho que lhe pareceu muito reto: 11...Cbc6 12.Cf3 Cxe5, mas depois da forte réplica 13.Bg5 encontrou-se em posição muito difícil, já que 13...Cxf3 falha por causa de 14.Bb5+! A possibilidade de reforçar o jogo das negras não escapou a clara visão analítica de Botvinnik]

12.Dh5+

Dessa maneira, é fácil compreender que com 11..., Bd7 se perseguem dois fins: o estratégico, ao contribuir com o desenvolvimento geral das peças e preparando o roque grande, bem como o tático, pelo qual se dirige uma ameaça contra o ponto c2 do adversário. Para não se ver submetidas a violentíssimo ataque, as brancas tem de despregar a máxima atividade. Existem razões para proceder assim. Com sua jogada 7..., f5, as negras se liberaram do compromisso de defender seu peão em f7, cuja ingrata tutela incumbia em parte ao monarca negro. Mas, por outra parte, debilitaram-se na diagonal e8-h5, ficando o rei desprotegido e as peças negras que se encontram em dita diagonal já não poderão contar com o apoio material de um peão. Também temos de atentarmos para o fato de que a dama branca se acha em condições de regressar a tempo a seu "país natal". [Se as brancas jogassem agora 12.Cf3 seguiria 12...Ba4 13.Bd3 Dxc3 e se encontrariam em situação crítica.; Por outro lado a 12.Ce2 as negras possivelmente continuariam também 12...Ba4 com a desagradável ameaça de 13..., d3]

12...Cg6

Com a jogada do texto, as negras lançam um "bola de sondagem" para saber se as brancas estão dispostas ao empate mediante 13.Dh7, Ce7; 14.Dh5+, etc. [Contra 12...Rd8 pensava continuar com 13.Bg5]

13.Ce2

Bem se compreende que a aceitação do empate teria sido uma derrota do espírito criador. Teria significado reconhecer o desconcerto diante da primeira inovação apresentada pelo adversário. A última jogada das brancas foi ditada pela intenção de aproveitar a cravada. Por enquanto se ameaça 14. Cf4 e a 14..., Rf7 calmamente 15. Bd3 ou prosseguir agressivamente com 15. g4. Agora as negras devem preocupar-se por seu rei. Nesta posição, Botvinnik esteve pensando mais de meia hora, do que se pode inferir que em suas análises de laboratório não tinha chegado a descobrir todas as sutilezas da variante. Botvinnik escolhe a melhor continuação e sacrifica outro peão.

13...d3!

[Não podiam satisfazer às negras as continuações 13...Dxe5 14.cxd4; ou 13...dxc3 14.Cf4 Rf7 15.Bd3 com uma série de desagradáveis ameaças. Por exemplo: 15...Cc6 16.Bxf5 exf5 17.e6+ Bxe6 18.Dh7+ Tg7 19.Dxg7+!; A retilínea continuação 13...Ba4 se presta a seguinte objeção: 14.Cf4 Dxc3 15.Bd3 Dxa1 16.Cxg6 Cc6 17.Cf4+ (mais forte do que a que considerei durante a partida: 17.Ce7+ Rd7 18.Cxg8 Txg8 com possibilidades aproximadamente iguais) ; Por outra parte, nada resolvia 13...Cc6 14.cxd4 Tc8 15.Ta2]

14.Cxd3

A resposta é forçada.

14...Ba4+?!

Ainda que pareça estranho esta jogada natural não é boa. O rei branco encontra em sua casa de origem refúgio mais seguro. [14...Cc6! simplesmente, seguido de 0-0-0 teria proposto às brancas problemas bem mais difíceis. Em tal caso, as negras obtinham muito efetiva compensação pelos dois peões sacrificados]

15.Re1 Dxe5?!

Lógico o afã de recuperar parte do material perdido, mas a jogada do texto implica desperdiçar demasiados tempos. [Mais em consonância com o plano seguido pelas negras teria sido 15...Cc6!? , ainda que isso já não seja tão forte, porque as brancas podem continuar com 16.f4 0-0-0 17.Bd2+/- , liberando depois as peças do flanco rei. Cedo ou tarde, as negras se veriam obrigadas a sacrificar seu cavalo em e5. Resulta difícil prever mais longínquos acontecimentos, mas as negras, em todo caso, teriam se apoderado da iniciativa]

16.Bg5!

Agora o principal problema das brancas é reter o rei negro no centro, já que poderiam ser criadas sérias ameaças na coluna do rei aberta.

16...Cc6 17.d4 Dc7 18.h4!+/-

Para por rapidamente em jogo a TR, em vista dos acontecimentos que estão a ponto de desenvolver-se no centro.

18...e5 19.Th3!+/- Df7 20.dxe5 Ccxe5 21.Te3 Rd7 22.Tb1 b6

Não é fácil intuir como, estando a dama em h5, possa significar algo o debilitamento da casa a6. E, no entanto, é assim!

23.Cf4

As peças brancas se desenroscam como um oculto fole.

23...Tae8 24.Tb4! Bc6 25.Dd1!

Chegou-se a uma situação bastante pitoresca. O rei e a dama das brancas, depois de tantas viagens, voltam a estar em suas casas de origem. O BR ainda não jogou. No entanto, a situação das negras é penosa. As brancas não só dispõem da vantagem de um peão saudável, senão que todas suas peças ocupam lugares ativos. A dama, especialmente, controla o centro de um modo muito eficaz.

25...Cxf4 26.Txf4 Cg6 27.Td4 Txe3+ 28.Fxe3

Não convém afastar o bispo de uma posição ativa. Em caso de necessidade, o peão em e3 poderá escudar ao rei.

28...Rc7 29.c4 dxc4

Conduz necessariamente a ganho de material. [A 29...Ce7 30.cxd5 Bxd5 31.Bxe7 Dxe7 32.Dc1+ Sem conceder nenhuma possibilidade]

30.Bxc4 Dg7 31.Bxg8 Dxg8 32.H5

O peão passado começa a atuar. Por este motivo, as negras abandonaram. 1-0

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Como Pensam os Mestres - 2

Novidade Bombástica

Comentários: MI Luis Henrique Coelho

A versão 2008 do Memorial Mário Covas definitivamente não começou bem para mim. Após perder para Zambrana uma partida onde ele jogou muito mal a abertura e ficou perdido no lance 11, perdi minha partida na 2ª rodada com uma situação oposta: saí da abertura com uma situação muito delicada devido a uma excelente novidade teórica posta em prática por meu adversário que parece refutar um sacrifício de qualidade introduzido por Anand em 1997 e que, até ontem, a teoria de aberturas tem considerado bom para as pretas. Foi minha segunda derrota seguida aplicando um sacrifício de qualidade.


Ainda mais catastrófico para mim, entretanto, foi o fato que, após pensar 40 minutos e decidir responder à sua novidade com o plano defensivo de 20...Rf8-21...Qd8, eu acidentalmente voltei a dama para ‘d8’ primeiro, após o que a posição das pretas já é completamente perdida devido à torre em ‘a8’ fora de jogo e, principalmente, ao peão desprotegido em ‘f7’. Descuidos desta ordem são coisas que podem acontecer quando se concentra por tempo demais em uma posição a ponto de sentir que se viajou para outro planeta, e então se esquece de dar uma última checada no lance que se decide fazer, somente para voltar ao Planeta Terra antes de seguir a partida. Ainda que eu já tenha ouvido vários casos de tal fenômeno surpreendendo jogadores profissionais, isso nunca me havia acontecido antes.

Tenho tido bons resultados em meus embates contra Krikor, havendo ganhado a última no Magistral Hebraica e, antes desta, empatado duas partidas onde estive ganho (Mário Covas 2007 e Villa Martelli 2008), mas desta vez tenho de reconhecer que ele merece todo o mérito por sua excelente preparação e, pode-se dizer, fácil vitória. Tal foi a profundidade de suas análises em sua nova idéia no lance 20 que ele usou menos de meia-hora para a partida inteira. A partida:

Mekhitarian, Krikor (2466) – Coelho, Luis (2392) – 2ª rodada.

Defesa Siciliana – Variante Richter-Rauzer – B65

1. e4 c5 2. Nf3 d6 3. d4 cxd4 4. Nxd4 Nf6 5. Nc3 Nc6 6. Bg5 e6 7. Qd2 Nxd4 8. Qxd4 Be7 9.0-0-0 0-0 10. f4 Qa5 11. Kb1 h6 12. h4 Rd8 13. Bd3 Bd7 14. e5 dxe5 15. fxe5 Bc6 16. Qf4 Nh5 17. Qg4 Rxd3 18. cxd3 hxg5 19. Qxh5 gxh4 20. d4 Qd8 21. Rhf1 g6 22. Qg4 Qf8 23. d5 Bd7 24. d6 Bd8 25. Rf4 Qg7 26. Rdf1 g5 27. Rxf7 Qxf7 28. Rxf7 Kxf7 29. Qf3+ Ke8 30. Qh5+ Kf8 31. Qh8+ Kf7 32. Qh7+ 1-0

Na posição do lance 17 (diagrama abaixo) as negras parecem ter problemas muito sérios: o cavalo em ‘h5’ não tem casa, e capturar o bispo branco em ‘g5’ ocasiona uma abertura potencialmente mortal da coluna ‘h’, a partir do que o bispo de ‘d3’ torna-se uma peça de ataque muito poderosa.

Uma variante conhecida como perdedora para as pretas, por exemplo, é 17...hxg5? 18.Qxh5 Rxd3 19.hxg5! Rxd1+ 20.Nxd1 com mate em alguns lances. Em Shirov-Anand, Monaco 1997, o GM indiano descobriu então um lance que parecia ser tão convincente que a variante 14.e5 ficou automaticamente desencorajada pela teoria e passou a ser vista com pouquíssima freqüência na prática magistral: o sacrifício de qualidade 17...Rxd3!, eliminando do tabuleiro o forte bispo branco e levando, assim, a uma posição onde as negras têm excelente compensação pela qualidade devido ao seu peão de vantagem, segurança de seu rei, falta de alvos de ataque para as brancas e atividade do par de bispos. A mencionada partida terminou empatada em mais alguns lances após 17...Rxd3 18.Rxd3 hxg5 19.Qxh5 gxh4 20.Rd4 g6 21.Rg4 Qc5 22.Rf1 Bf6 23.Rxg6+ fxg6 24.Qxg6+ Bg7 ½-½.

Após Shirov-Anand alguns defensores das brancas, como o GM francês Igor Nataf e seu colega sérvio Milos Pavlovic, passaram então a advogar a causa do lance 18.cxd3, criando a possível idéia de avançar d4-d5. Ninguém pareceu levar esta nova idéia muito a sério, e a última partida séria na variante também havia acabado rapidamente em empate: 17...Rxd3 18.cxd3 hxg5 19.Qxh5 gxh4 20.Rxh4 Bxh4 21.Qxh4 Qd8 22.Qh3 Qg5 23.Rh1 Qh6 24.Qxh6 gxh6 25.Rxh6 Bxg2 26.Rh4 Bc6 27.Ne4 ½-½, Jaracz-Miroshnichenko, Bad Wiessee 2005.

Eu tinha conhecimento de tudo isso antes da partida de ontem, e me julgava bem versado em toda esta linha. O que eu não esperava, contudo, é que Krikor estivesse com uma preparação de aberturas tão profunda a ponto de não apenas conhecer toda a teoria da variante, como também ter preparado sérias melhoras sobre a informação já existente. O que torna o 20.d4! de Krikor tão mais forte que o 20.Rxh4?! de Pawel Jaracz é a flexibilidade: enquanto o GM polonês se precipita em um ataque imediato pela coluna ‘h’ aberta, o mestre brasileiro mantém a possibilidade de Rxh4 enquanto mantém em aberto a idéia de atacar ‘f7’ e, agora, cria também a idéia de avançar d5. São três idéias de ataque diferentes em uma mesma posição, e após alguns minutos de reflexão percebi com desgosto que havia entrado em campo minado e que as pretas agora estão sob séria pressão. Pensei primeiramente no óbvio 20...Bxg2?, mas vi que 21.Rh2 h3 22.Rg1!, com a idéia de 23.Rgxg2, é ganhador para as brancas. Considerei então 20...Rd8?, mas aí vem 21.Rxh4! Bxh4 22.Qxh4 e as brancas ganham porque não tenho mais o recurso salvador de Qd8-Qg5-Qh6 de Miroshnichenko. Vi também que 20...Qd8? tampouco oferece resistência porque após 21.Rhf1 g6 22.Qg4 eu não tenho como evitar o avanço d4-d5, já que 22...Qd7 23.d5! cxd5 24.Qxd7 Bxd7 25.Nxd5 Kf8 26.e6! Bxe6 27.Nc7 ganha peça.

Ficou claro, então, que as únicas reações possíveis eram contra-atacar com 20...b5 ou defender-me com o plano de 20...Rf8-21...Qd8. Eu estava muito tentado a executar a primeira opção, mas quão inteligente seria entrar na variante mais tática possível após cair em uma preparação caseira? Eu vi que após 20...b5 21.d5! b4 22.dxc6 bxc3 as brancas têm diversas opções como 23.Rhf1, 23.Rd7, 23.Qe2, julguei ser praticamente impossível calcular tudo isso sob pressão do relógio, e então voltei minhas atenções para o plano 20...Rd8-21...Qd8. Não vi nenhuma forma de as brancas conseguirem mais que uma pequena vantagem contra essa idéia, apesar de sua posição ainda ser preferível – eu não tinha ambições de refutação, lutava apenas para obter uma posição jogável onde eu teria chances reais de lutar pelo empate.

Priorizando a praticidade, e preocupado por já estar com quase 1 hora a menos no relógio, decidi afinal aplicar o plano de 20...Rf8 seguido por 21...Qd8 e, somente então, com as casas ‘f7’ e ‘d5’ devidamente protegidas, buscar contra-jogo com o avanço ...b5. Eu estava satisfeito por ter encontrado este plano, mas oscilei de “satisfeito” para “horrorizado” em 1 segundo quando me dei conta que minha mão havia jogado 20...Qd8?? primeiro, antes de jogar a torre em ‘f8’! Krikor então começou a pensar em seu próximo lance, enquanto eu, incrédulo, me retirava do recinto e decidia se iria abandonar a partida caso ele encontrasse 21.Rhf1. Após pouco mais de 10 minutos de reflexão ele encontrou este preciso lance e, a partir daí, joguei meus últimos lances na partida apenas por inércia, para me acostumar aos poucos com a idéia de que meus quarenta minutos de esforço na posição do lance 20 foram em vão e que a derrota seria inevitável. O xadrez de competição não perdoa.

Como pensam os Mestres - 1

Comentários: MI Luis Henrique Coelho

Os memoriais Mário Covas e Regina Helena tiveram sua primeira rodada realizadas ontem à tarde (sábado, 17/05/08) nas dependências do Hotel Atlântico, no bairro Gonzaga, em Santos. O evento realmente está melhor a cada ano e, em sua versão 2008, as partidas estão sendo jogadas em um amplo, confortável e exclusivo ambiente, ainda melhor que o dos anos anteriores. Isso possibilitou que a cerimônia de abertura fosse presenciada por cerca de uma centena de pessoas, entre elas membros da diretoria da Federação Paulista de Xadrez e representantes dos patrocinadores. Fui surpreendido com a gentileza de ter sido convidado pelo árbitro principal Ramon Arnal Carrasco Júnior a compor a mesa e dizer algumas palavras em nome dos participantes brasileiros do evento, onde fiz questão de enfatizar a louvável conquista da FPX de conseguir promover um evento deste porte pelo oitavo ano consecutivo.

Mas os bons momentos acabaram por aí. Apesar de todo meu esforço na preparação pré-partida e de toda a minha energia durante a própria, fui derrotado uma vez mais pelo GM boliviano Oswaldo Zambrana após cometer um erro imperdoável no lance 23. Eis a transcrição da partida:

Coelho, L (2392) – Zambrana, O (2479), 1ª rodada

Defesa Siciliana – Variante Scheveningen – B84

1.e4 c5 2.Nf3 d6 3.d4 cxd4 4.Nxd4 Nf6 5.Nc3 a6 6.Be2 e6 7.0-0 Be7 8.f4 Qc7 9.Be3 0-0 10.g4 Re8 11.g5 Nfd7 12.f5 Ne5 13.Bd3 Nbc6 14.Qh5 Bd7 15.Rf4 g6 16.Qh6 Bf8 17.Qh3 Nxd4 18.Bxd4 Bg7 19.Raf1 Nxd3 20.Bxg7 Nxf4 21.Rxf4 Qc5+ 22.Kg2 h5 23.Rh4 ef5 24.Bf6 Re6 25.Rxh5 gxh5 26.Qxh5 Rxf6 27.gxf6 Qe3 28.Nd5 Qxe4+ 29.Kf2 Qd4+ 30.Ke1 Re8+ 31.Ne7+ Rxe7+ 32.fxe7 Qe3+ 0-1

Eu passei várias horas na semana antecedente à partida pensando no que fazer para quebrar a sina de derrotas para Zamby. A conclusão a que cheguei é que o mais importante seria administrar a luta do relógio da forma mais inteligente possível, e com isso em mente decidi: 1) Jogar de forma extremamente agressiva, provocando complicações táticas, assim forçando-o a pensar também, já que ele joga muito rápido as posições mais conceituais; 2) Surpreendê-lo na abertura; 3) Passar do lance 15 tendo usado no máximo meia-hora; 4) Jogar algumas partidas de Blitz pela internet, no dia da partida, para “entrar no clima”.

E, de início, tudo deu muito certo. Zambrana naturalmente não esperava que eu fosse abrir com 1.e4, lance que não utilizo seriamente desde a conquista do título de MI em 2003. Ele aplicou a Variante Najdorf, e rapidamente transpomos para a Variante Scheveningen, como eu havia esperado. E no lance 9, para meu deleite, um descuidado Zambrana fazia um lance que eu sabia que já está refutado há uma década, particularmente pelas semiminiaturas de um então desconhecido Emil Sutovsky sobre Judit Polgar e Loek Van Wely no torneio de Tilburg, na Holanda, em 1996, e pelo massacre de Shirov sobre Judit neste mesmo torneio (nem preciso mencionar que a melhor jogadora da história jamais tornou a jogar 9...0-0? nesta posição novamente!). A razão pela qual 9...0-0? é um erro sério é que as brancas conseguem jogar 10.g4! impunemente, enquanto que o correto 9...Nc6 inibe este avanço, já que 10.g4?! então seria respondido com 10...Nxd4 11.Bxd4 e5! 12.Be3 exf4 13.Bxf4 Be6 14.g5 Nd7, com boa posição para as pretas.

Logo em seguida Zambrana cometeu outro erro sério, 10...Re8?, o mesmo cometido por Judit contra Shirov, após o que a posição das pretas já é considerada perdida pelo Super-GM letão-espanhol. Eu sabia da existência desta partida, sabia que 10...Re8 era violentamente refutado, mas como eu havia estudado isso há mais de cinco anos eu não conseguia me lembrar o porquê. Apenas me lembrava que era uma variante muito concreta que envolvia um sacrifício, mas eu fiquei tão incomodado quanto confuso entre a opção de tentar me lembrar da refutação ou de tentar encontrá-la no tabuleiro, especialmente porque ambas as opções poderiam me tomar 1 hora de reflexão, sem nenhuma garantia de sucesso. Resolvi então, relembrando-me de minha estratégia de não ficar inferior no relógio, não pensar mais que 10 minutos e seguir jogando a partida com as minhas próprias idéias, jogando uma continuação de ataque que, ainda que não seja imediatamente destruidora, me dava chances reais de lançar um perigoso assalto ao monarca negro.

Uma análise fria aponta, entretanto, que os erros 9...0-0? e 10...Re8? foram respondidos com dois lances igualmente equivocados, 11.g5? e 12.f5?. A refutação é 11.f5! (ameaçando 11.g5 Nfd7 12.fxe6) Bf8 12.g5 Nfd7 13.Nxe6!! fxe6 14.Bh5!+-, com vantagem decisiva para as brancas em todas as variantes e 1-0 em 30 lances em Shirov-J.Polgar, Tilburg 1996. Meu 11.g5? é inferior porque após 11...Nfd7 12.f5 as negras não são mais forçadas a jogar 12...Bf8, podendo jogar 12...Ne5! como Zambrana fez. Este cavalo em ‘e5’ é bastante incômodo por ser uma peça muito competente ofensiva e defensivamente, e por esta razão eu certamente não deveria ter jogado 12.f5?. As brancas manteriam uma clara vantagem com o direto 12.Bd3!, seguido do plano de Qh5-Rf3-Rh3, ameaçando um ataque direto sobre ‘h7’ e sem permitir a centralização do cavalo negro de ‘d7’.

Mas a posição branca é tão boa que, mesmo após dois erros seguidos, seu ataque ainda é perigoso e oferece ao menos boas chances práticas de vitória. Eu seguia otimista com minhas chances porque havia usado apenas 31 minutos nos primeiros 18 lances e tinha tempo de sobra para refletir nas posições mais importantes. A posição crítica então veio no lance 19, onde eu tinha cinco lances candidatos interessantes (19.f6, 19.Rh4, 19.Kh1, 19.Bxe5 e 19.Raf1) e pensei 40 minutos para decidir pelo sacrifício de qualidade 19.Raf1!?, após o que o sempre rápido Zambrana usou 1 hora no relógio (!) para corretamente aceitar a oferta com 19...Nxd3! 20.Bxg7 Nxf4 21.Rxf4. O Grande Mestre de Sucre então encontrou o excelente recurso defensivo 21...Qc5+ 22.Kg2 h5!, após o que fica muito difícil as brancas atingirem o rei negro a curto prazo. O péssimo 22...Kxg7??, em contraste, levaria mate após 23.Qh6+ Kh8 24.f6 Rg8 25.Qxh7+! Kxh7 26.Rh4#.

Neste momento ambos contávamos com apenas cerca de 15 minutos no relógio, e eu tenho pela frente uma segunda posição crítica, na forma de uma dificílima escolha de tentar um arremate rápido com 23.Rh4 ou jogar 23.gxh6 e aceitar uma posição que, ainda que as brancas tenham compensação pela qualidade a menos devido aos muitos buracos em casas pretas ao redor do rei adversário, permanece incerta. Após dedicar alguns minutos e calcular algumas variantes de ganho forçado como 23...Kxg7 24.f6+ Kg8 25.Rxh5! gxh5 26.Qxh5 Qe3 27.Qh6 Qd2+ 28.Kf3!, ou 26...d5 27.g6!!, e também de ter encontrado algumas variantes onde as brancas garantiam pelo menos um empate por xeque-perpétuo, decidi optar por 24.Rh4, que infelizmente revelou-se um lance perdedor após a perfeita defesa de meu adversário com 23...exf5 24.Bf6 Re6!! 25.Rxh5 gxh5 26.Qxh5 Rxf6 27.gxf6 Qe3!!, e agora nem o recurso de empate por xeque-perpétuo existe mais.

A análise post-mortem foi muito movimentada, com o GM Fier, El Debs, di Bernardino e eu acreditando que as brancas têm de ter algum arremate em algum momento, enquanto Zambrana, Andrés e Rafael acreditavam nos recursos defensivos das pretas. Andrés parecia estar se entretendo bastante se referindo a meu ataque com um “mi Diós, eso es todo mentira!”, enquanto Rafael se divertia zombando de toda idéia de ataque que eu tentava criar, “Coelhinho, me escuta, senão você vai passar 3 horas analisando isso com o Fritz só pra descobrir que eu estava certo!”. E o pior é que, no final das contas, acho que os GMs brincalhões tinham mesmo razão e que, ainda que o ataque das brancas seja visualmente ameaçador, as pretas sempre parecem ter recursos de defesa e contra-ataque suficientes. A vitória foi desperdiçada nos lances 11 e 12.

Para finalizar, segue a transcrição do mini-match de partidas de blitz (3 minutos, sem acréscimo) que joguei no ICC, como preparação para a partida contra o Zambrana, contra um Mestre Internacional russo não-identificado:

1ª partida

Brancas: SibTeam (IM) – 3003

Pretas: DeepRabbit (IM) - 2885

1. e4 c5 2. c3 Nf6 3. e5 Nd5 4. Nf3 d6 5. Bc4 Nb6 6. Bb3 Nc6 7. exd6 e6 8.O-O Bxd6 9. d4 cxd4 10. cxd4 O-O 11. Nc3 Ne7 12. Qe2 Bd7 13. Ne4 Bc6 14. Bg5Bd5 15. Bc2 Bc4 16. Bd3 Bxd3 17. Qxd3 Qd7 18. Rfe1 Nbd5 19. Rad1 Ng6 20. h4Rac8 21. h5 Ngf4 22. Qd2 Nxh5 23. g4 Bf4 24. Qd3 Bxg5 25. Nexg5 Nhf6 26. Ne5Qc7 27. Kg2 Qc2 28. Qg3 Qxb2 29. Rh1 Rc3 30. Rd3 h6 31. Ngf3 Ne4 32. Qh4Nf4+ 33. Kf1 Qb1+ 34. Ne1 Nxd3 35. Nxd3 Rxd3 36. g5 Rd1 37. Ke2 Rc8 38. gxh6Rd2+ 39. Ke3 Rc3+ 40. Kf4 Rxf2+ 41. Ke5 f6+ 42. Kxe6 Qb6+ 43. Ke7 Rc7+ 44.Ke8 Qe6+ 45. Kd8 Qd7# 0-1

2ª partida

Brancas: DeepRabbit (IM) - 2897

Pretas: SibTeam (IM) – 2991. d4 g6 2. c4 Bg7 3. e4 d6 4. Nc3 Nc6 5. d5 Nd4 6. Be3 c5 7. Nge2 e5 8.dxe6 Nxe6 9. Qd2 Nf6 10. Bh6 Bxh6 11. Qxh6 Ng4 12. Qd2 Ne5 13. Ng3 Nd4 14.O-O-O Be6 15. Nd5 Bxd5 16. exd5 O-O 17. f4 Ng4 18. h3 Qh4 19. hxg4 Qxg3 20.f5 Rfe8 21. Rh3 Qe5 22. Bd3 h5 23. gxh5 gxf5 24. Qg5+ Qg7 25. Qf4 Qe5 26.Rg3+ Kh7 27. Qf2 Rg8 28. Re3 Qf6 29. Rf1 Rg5 30. g4 Rxg4 31. Bxf5+ Qxf5 32.Qxf5+ Nxf5 33. Rxf5 Rxc4+ 34. Kd2 Rf8 35. Re7 Kh6 36. Rfxf7 Rxf7 37. Rxf7 b538. Rf6+ Kxh5 39. Rxd6 a5 40. Rd8 Kg6 41. d6 Kf6 42. Ra8 Ke6 43. Rxa5 b4 44.Ra6 Kd7 45. Kd3 Rd4+ 46. Kc2 c4 47. a3 bxa3 48. bxa3 Rd3 49. Ra4 Rd4 50. Kc3Rd3+ 51. Kxc4 Rxd6 52. Ra7+ Kc8 53. Kb5 Kb8 54. Rh7 Rd5+ 55. Kb4 Rg5 56.Rh8+ Kb7 57. a4 Rg4+ 58. Kb5 Rg7 {Tempo } 0-1

domingo, 18 de maio de 2008

ESCOLAS APONTAM QUE PROJETO XADREZ NA SALA DE AULA COMEÇA A APRESENTAR RESULTADOS

Por Róbinson Gambôa

Tido como uma mistura de esporte e ciência, o xadrez cada vez mais vem sendo usado em sala de aula como ferramenta aliada no processo de aprendizagem, revelando-se num interessante recurso pedagógico. No Brasil, já são inúmeras as experiências com iniciativas públicas na inclusão do xadrez no dia a dia das escolas.

Em Cachoeirinha (RS), incentivadas por um projeto financiado elo Fundesp, 18 escolas aderiram à idéia de usar o xadrez na educação. Em alguns casos os resultados começam a ser festejados. Professores e estudantes estão descobrindo na prática que o jogo desenvolve o raciocínio lógico, fazendo com que o aluno pense com agilidade e estratégia, melhorando seu poder de concentração e sua criatividade.

Na escola Municipal Getúlio Vargas, na Vista Alegre, a professora Marisete Bergamaschi incluiu neste ano o xadrez nos laboratórios de aprendizagem, que busca oferecer atividades como reforço escolar para alunos com alguma dificuldade. O desafio maior foi conseguir atrair os estudantes até a escola no turno contrário às aulas. Mais do que cumprir com essa tarefa, o xadrez acabou virando uma febre entre os adolescentes. Hoje, cerca de 60 alunos da manhã voltam à escola à tarde, nas terças-feiras, para jogar, debater, aprender e ensinar.

Marisete conta com a ajuda de dois monitores, alunos da 8ª série, que participaram das oficinas do Fundesp, em abril. José Barcelos e Marlon Conceição demonstram paciência e dinâmica para ajudar a ensinar. No dia 12 de outubro, a escola fará um campeonato interno para revelar os primeiros talentos surgidos no projeto. A diretora Jane Dorneles conta que os resultados já são visíveis. “Eles estão com a auto-estima alta, se sentem valorizados e melhoram a convivência em grupo”, conta. Jane, que ainda não sabe jogar xadrez, já pensa em ampliar a abordagem da atividade na escola. “Queremos começar com oficinas, abertas a todos os alunos, e não só os do Laboratório. Vamos começar na semana da criança. Se der certo, vamos continuar”, conta. Jane também autorizou nesta semana a compra de uma coleção com 12 livros especializados sobre o assunto.

Na Escola Municipal Maria Fausta Teixeira, a professora Cristina Winter pensa em adotar o xadrez nos seus laboratórios. Insegura por não dominar as estratégias mais complexas do jogo, Cristina esteve visitando o trabalho desenvolvido na Getúlio Vargas, e gostou do que viu. “Vamos começar com o xadrez ainda nesta semana”, confirmou. Até o fim do ano, ela quer montar uma equipe para visitar a escola vizinha para jogar.

Na escola Tiradentes, as oficinas coordenadas pelo professor Ernani Cibeira já criaram um pequeno ídolo. Leonardo Alves, de 11 anos, venceu os dois torneios promovidos na escola neste ano, desde julho. No dia de receber sua primeira medalha, Leonardo enfrentou numa série de cinco partidas a estudante Débora Lemos, de 17 anos, aluna da Escola Princesa Isabel, que foi a campeã municipal dos Jergs na categoria feminino. Leonardo venceu por 3 a 2 e virou um herói entre os colegas. Ernani quer agora promover o garoto a monitor, para ajudar outros colegas a aprenderem. As atividades ocorrem no laboratório de informática, nas quintas-feiras à tarde.

Na Escola Portugal, a professora de matemática Lílian Einsfeldt foi mais adiante, e adotou o xadrez no currículo da sua disciplina. Ali, o jogo faz parte das aulas. “É possível treinar a memorização. As habilidades no jogo auxiliam o aprendizado de todas as outras disciplinas”, explica. Na Portugal, os dois tabuleiros oficiais doados pelo Projeto do Fundesp a todas as 18 escolas envolvidas, não foi suficiente. Lílian confeccionou tabuleiros em papel e comprou peças de plástico em lojas de R$ 1,99.

Na escola Roberto Silveira, quatro professores que trabalham com a matemática tem se reunido para discutir a forma como irão trabalhar o xadrez.

Nas escolas Nossa Senhora de Fátima e Luis de Camões, ambas estaduais, o xadrez tem sido usado no projeto Escola Aberta, aos sábados. Na Fátima, a professora de educação física Stela Rodrigues também trabalha com o jogo nas suas aulas, de segunda a quinta-feira.

O professor Nilson Magnus, da escola Osvaldo Camargo também desenvolve atividades com o xadrez nas suas aulas. “A partir da 5ª série, todos têm contato com o xadrez. Daí, muitos acabam desenvolvendo uma seqüência”, conta. Na Escola, o xadrez faz parte todos os anos dos Jogos da Primavera, uma olimpíada anual entre as turmas com diversos esportes.

Um exemplo de esportividade!

A segunda rodada do Torneio de Rotterdam (Holanda – junho/1989), quinta prova da Copa do Mundo, estava destinada a produzir situação das mais insólitas, não só por ter como cenário uma das competições mais categorizadas e como protagonistas profissionais de altíssima colocação no “ranking” internacional (Ljubojevic e Ehlvest, com ELO de 2635 e 2662, ocupavam, respectivamente, as 9ª e 11ª posições da lista da FIDE válida para o segundo semestre do ano de 1990), mas, também, por envolver fortuidade de difícil ocorrência na prática magistral.


Após prolongada luta, a partida Ehlvest x Ljubojevic chegou à posição do diagrama:


Neste ponto, o jogo foi suspenso e Ehlvest efetuou seu lance secreto. Como o movimento 62.Th7 ganha facilmente, antevia-se um reinício desinteressante seguido de um final destituído de emoções.

Só que o diretor de cena - o Acaso – reservara um desfecho surpreendente: fazendo do lance secreto o fruto de um descuido incompatível com a categoria do condutor das peças brancas, elevou a extremos a dramaticidade do que ia seguir-se e colocou a grande altura o comportamento isento e nobre que apenas um verdadeiro esportista pode ter.

Quando o envelope foi aberto, verificou-se, com surpresa, que o lance secreto era ...Tf2-a2! Estava claro que Ehlvest pretendera escrever Tc7-h7, mas, por descuido, anotara o lance como se a posição do tabuleiro estivesse invertida!


De acordo com as Regras da FIDE, o jogo está perdido para o jogador que efetua lance secreto cujo significado não pode ser estabelecido ou que seja impossível.

Nada obstante, o veterano condutor das peças negras aceitou que a intenção do movimento era clara e, cavalheirescamente, abandonou a partida.


Não são muitos os enxadristas, temos que reconhecer, capazes de gestos como o do insigne Ljubojevic, plenos de respeito à categoria do adversário, fidalguia e esportividade.

Estude os Clássicos!

Por: Paulo Sérgio de C. Oliveira

Tenho testemunhado durante todos esses anos em que aprendo a Arte de Caissa, um conselho comum de enxadristas e treinadores de elite: 'Devemos estudar os Clássicos'!

Mas nunca li uma explicação bem clara sobre o porquê de fazê-lo. Para mim bastava sentir o efeito de tal estudo, que sempre foi positivo. É como acender a luz, alguém lhe disse alguma vez no passado; 'ligue o interruptor'! Basta, para quem quer luz...

Agora se você é do tipo investigativo, recentemente li a seguinte explicação (parcial): '...para evitar que alguém invente a roda novamente...'.

A questão do modelo é crucial, pois os antigos deixaram muitos modelos sólidos, que hoje são apenas repetidos por Kasparov ou Kramnik. Inventar algo novo é muito difícil e os bancos de dados estão aí para checar isto. Os ancestrais deixaram estratégias, manobras padronizadas, finais, exemplos, atitudes. A nossa ignorância disso é terrível e desrespeitosa. Costumamos ignorar modelos de enxadristas brasileiros e dos nossos velhos campeões. Mas eles só não chegaram lá, no Campeonato Mundial, porque tinham outras prioridades. E haviam nascido no lugar errado, onde as chuteiras eram o intelecto permitido.

Walter Osvaldo Cruz foi um desses campeões marcantes. Filho do famoso médico sanitarista Osvaldo Cruz, também escolheu a Medicina como carreira, na especialidade de Hematologia. Não sei como conseguiu também ser 6 vezes Campeão Brasileiro de xadrez, e naquele tempo não havia 'marmelada'! Ou melhor, tinha, mas era servida como doce mesmo!

Eram provas duras, com adversários de alto nível e longo tempo de jogo, além de suspensões eventuais. Cruz foi campeão nos anos de 1938, 1940, 1942, 1948, 1949 e 1953. Em provas internacionais, empatou com Alekhine e vários jogadores de altíssimo nível.

Cruz, Walter Osvaldo - Apsheniek, Fritzis

Buenos Aires, Olimpíada Mundial, 1939 [C68: Ruy Lopez, variante das trocas]

Comentários de Roberto Grau

1.e4 e5 2.Cf3 Cc6 3.Bb5 a6 4.Bxc6

Roberto Grau: esta variante das trocas é relativamente pouco usada, apesar de ser muito interessante. Leva a uma partida pausada, de posição, na qual as brancas têm que tratar de explorar a sua vantagem de peões na ala do Rei, enquanto o negro tem que aproveitar a existência de seus dois bispos para obter uma compensação. É sugestivo o fato de que o segundo jogador tem que tratar de ganhar, porque não pode jogar para empate, já que a maioria de peões contra um jogo passivo, iria se impor inexoravelmente.

4...dxc6 5.d4

Roberto Grau: a jogada de Lasker, para entrar imediatamente no final desejado. A jogada proteladora 5.Cc3, ameaçando 6.Cxe5, tem a bonita resposta de Berstein 5...f6!

5...exd4 6.Dxd4 Dxd4 7.Cxd4 Cf6

Roberto Grau: Superficialmente jogado. O desenvolvimento rotineiro do cavalo o deixa mal colocado, já que a sua melhor casa nesta variante é e7, para depois de c5 transladar-se via c6 a d4. Roberto Grau sugere que a melhor jogada parece ser 7. ..Bd6, mas Oscar Panno corrige: a melhor defesa radica em 7...Bd7 (7...c5 8. Ce2 Bd7 é uma sugestão de Pachman) 8.Be3 O-O-O, com chances equilibradas.

8.f3 Bc5 9.Be3 O-O 10.Cf5 Bxe3 11.Cxe3

Roberto Grau: e agora, destruído o par de bispos do negro, a vantagem do branco é teoricamente decisiva, mas tem que fazê-la efetiva, e isto é o que faz em estilo clássico o mestre brasileiro. A partir deste momento sua tarefa é impecável e a audácia e a beleza da concepção final da partida é notável.

11...Be6 12.Cc3 Tad8 13.O-O Tde8 14.Tad1 Bc8 15.Tfe1 g6 16.Rf2 Rg7 17.g4 h5

Roberto Grau: Típico do empreendedor mestre Letão. Mas o branco calculou um plano profundo para opor-se à projetada invasão pela coluna h.

18.h3 Th8 19.Rg3 Cd7 20.f4 Cc5 21.e5 a5 22.Cc4

Roberto Grau: ao mesmo tempo em que trata de valorizar a sua maioria de peões, Cruz aproveita a oportunidade brindada pela última jogada de Apcheniek para melhorar a situação de um cavalo e provocar o adversário. O Tema de Capablanca: 'limpar a folhagem' da posição para aproveitar as vantagens de forma pura, sem rebuscamentos.

22...b6 23.Cd2

Rumo à melhor casa para esta peça, ou para a sua 'irmã'!

23...Th7 24.Cde4 hxg4 25.hxg4 Cxe4+ 26.Cxe4 Teh8 27.Cf2!

Roberto Grau: a chave da defesa do branco.

27...Be6 28.b3

Roberto Grau: quiçá seja mais exato 28.a3.

28...a4 29.Th1 Txh1 30.Cxh1 axb3 31.axb3 Ta8

Roberto Grau: já que a entrada é impossível por outra parte, vai pela coluna a. Mas o branco, que viu muito longe, tem reservada uma manobra oculta, que não só anula o plano do mestre europeu como também assegura ao brasileiro um notável triunfo.

32.Cf2 Ta2 33.Ce4!

Roberto Grau: entregando o peão, que não pode tomar-se por causa de 34.Td8 e o mate é inevitável. PS: o mate se evita com 34...f5, também perdendo, porém com complicações. Mas 34.Cf6! transpõe para o que aconteceu na partida.

33...Bd5 34.Cf6 Txc2

Roberto Grau: e o negro tomou o peão. Mas agora a invasão é pela coluna a. Talvez o melhor para o segundo jogador fosse voltar a a8, mas depois de 35.c4 Be6 36. Tf1, ou simplesmente 35.Cxd5 cxd 36.Txd5, o branco deveria ganhar igualmente.

35.Ta1 Tc3+ 36.Rh4 Bg2!

Roberto Grau: muito engenhoso, para evitar o mate ameaçado voltando com a torre para h8.

37.Ta8 Th3+ 38.Rg5 Th8 39.Ce8+ +-

se: 39.Txh8 Rxh8 40.e6! (ameaçando e7) fxe 41.Rxg6 também ganha, mas não teria a bonita variante que segue.

39...Rh7 40.Rf6 c5 41.Rxf7! Tf8+

Roberto Grau: evidentemente não 41...Bxa8, por causa de 42.Cf6+ seguido de g5++. Por outro lado, se 41...Rh6, então 42.g5+ e Cf6+ dão mate ou ganham a torre.

42.Rxf8 Bxa8 43.Cf6+ Rh8 44.f5 g5

Se 44...gxf 45.g5! seguido de g6 e g7++! Quem precisa de modelos de mestres estrangeiros?!

45.e6 Bc6 46.Cd7 1-0

Roberto Grau: um trabalho finíssimo.